Desde que foste, sonho com:
ondas do mar,
pêssegos e -
máquinas do tempo.
[1922-2012]

unexpected 1




A ironia ensina a sabotar uma frase
Como se faz a um motor de automóvel:
Se retirares uma peça a máquina não anda, se mexeres
No verbo ou numa letra do substantivo
A frase trágica torna-se divertida,
E a divertida, trágica.
Este quase instinto de rasteirar as frases protegeu-me,
Desde novo, daquilo que ainda hoje receio: transformar
A linguagem num Deus que salve, e cada frase num anjo
Portador da verdade. Tirar seriedade ao acto da escrita
Aprendi-o na infância, tirar seriedade aos actos da vida
Comecei a aprender apenas depois de sair dela, e espero
Envelhecer aperfeiçoando esta desilusão.


Gonçalo M. Tavares

Poesia às Quintas – com Miguel Martins
5ª sessão – Bar a Barraca – 15/11 - 22.30h
(entrada livre)
 
 

 
Emanuel Félix foi um dos mais notáveis e originais poetas do século XX português, infelizmente desconhecido por muitos, até dos poucos que (por cá e no mundo) lêem poesia. Na próxima Quinta, Miguel Martins e Rui Miguel Ribeiro darão voz a alguns dos seus poemas, prometendo fazer o melhor que possam e saibam.
 
Posto este intróito, escrito com o comedimento que a veneração impõe, passemos à palhaçada:
 
Mas que Rui Miguel Ribeiro é este? O poeta dos imortais versos de “XX Dias”? O intrépido globetrotter de quem se afirma ser o último homem vivo a ter palmilhado o istmo sicilo-tunisino com alpercatas? O devasso e decadente boémio conhecido por “trombeiro da Areosa”, que, ao que consta, é detentor de 5% de uma casa de meninas em Baleizão? Sim!, ele é estes três e muitos mais! E a sua voz de sopranino abaritonado promete despertar sensações há muito esquecidas em todas as octogenárias que decidam assistir à leitura.
 
Quem não aparecer é porque acha que literatura é as patacoadas do Chiquinho Viegas.
Até Quinta!

 
Vitorino canta Herberto Helder
Poesia às Quintas – com Miguel Martins 
 
4ª sessão – Bar a Barraca – 08/11 - 22.30h
(entrada livre)

Por encomenda da Dra. Rosa Guimarães, que trará ao evento uma turma liceal (que ou se porta bem ou vai para casa dizer aos avós que também já conhece a palmatória), esta semana toca a Fernando Pessoa sofrer tratos de polé às mãos do mefistofélico diseur Miguel Martins, acabadinho de chegar de uma tournée que passou por Conakry, Bissau e Moimenta da Beira, com audiências da ordem dos 0 (zero) espectadores (ou espetadores, como, graças à palhaçada vigente, agora se escreve).
A função será, pela segunda vez, abrilhantada pelo génio guitarrístico de Filipe Homem Fonseca (a metade menos obesa dos Cebola Mol, não obstante as constantes visitas do Eduardo ao Dr. Tallon).
Fonseca, que, de algum tempo a esta parte, ganhou hábitos epífitos, descerá do topo da sua araucária favorita para nos maravilhar com algumas das mais belas melodias de sempre, um pouco à maneira de Mantovani, Burt Bacharach, Liberace ou Jimi Hendrix. Em suma, será uma pândega do camandro!
Quem não aparecer deixará uma ferida insanável nos nossos corações, semelhante à que o Dr. Sampaio, em boa hora, inflingiu ao Dr. Santana Lopes.

 
 


Doer a transparência do sossego:
terna agonia em que nos dissipamos,
entre os destroços de uma construção
teórica. Doer em pensamento
este sossego que na transparência
desmonta o aparelho: imagem tida,
repente breve, ou só memória já.
Vai ser difícil continuarmos vivos,
pensa, como eu, que assim será, difícil,
antes que os deuses nos prometam tudo.
LUÍS ADRIANO CARLOS
Invenção do Problema, Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2006

HOJE no BAR A BARRACA

Quintas de Poesia, com Miguel Martins
3ª sessão, 01/11, 22.30h – Entrada livre


Não senhores, nem os Beatnicks se interessavam só por chamom e passeatas (isso são os netos, conforme se pode verificar nos chamados “festivais de Verão”, da Zambujeira, por exemplo, a casa do c… mais velho) nem a sua produção literária se confinou àquele territóriozito sobreavaliado a sul do Canadá. Ao invés, até por terras lusas os peculiares maneirismos estilísticos e as temáticas destrambelh adas que esse movimento cultivou foram tendo eco digno de relevo, ao longo de décadas. Alexandre Saldanha da Gama, Andre Shan Lima, Levi Condinho e Maria do Céu Guerra são quatro exemplos cimeiros de poetas beat nados e criados nesta ditosa terra a que insisto em chamar ditosa terra. Miguel Martins, a.k.a. ‘não é flor que se cheire’, lê-los-á esta Quinta à noite, cheio de garbo e pundonor. A seu lado, contará com Abdul Moimême, no saxofone, o que, só por si, é garantia de laivos histéricos no comportamento do sector feminino da audiência (bem como no de Nuno Guerreiro), situação que se tem verificado amiudadas vezes, desde que, em 1962, subiu ao palco durante um concerto dos Beatles. Quem não aparecer demonstrará, sem margem para dúvidas, ter metido o dedinho na elaboração do Orçamento de Estado.
 
 
Quintas de Poesia, com Miguel Martins – 2ª sessão, 18/10, 22.30h – Entrada livre


Demiurgo, chamam-lhe alguns; estúpido, a maior parte: eis Miguel Martins, o bardo, de regresso ao bar d’A Barraca, para mais uma noite encantatória, à maneir...
a do melhor a que nos habituaram os estúdios da Disney.

Desta vez, o poeta que, digamos assim, vai ao castigo não é outro que não Guerra Junqueiro, nome maior das letras finisseculares de Freixo de Espada à Cinta e, a época, proprietário de uma das mais prósperas roulottes de francesinhas da Capital do Norte, chegando a facturar para cima de oitocentos mil reis em noites de clássico.

Quanto a convidados, um homem que dispensa apresentações: Luís Henriques, ilustrador de renome, autor de livros como “Babinski” ou “O Espírito da Colmeia”, que marcaram indelevelmente sucessivas gerações assim de miúdos como de graúdos. Luís Henriques (“o tripé humano”, “o quebra-nozes” ou “a anaconda da Graça”, como também é conhecido, por motivos que não vêm ao caso) ilustrará ao vivo a leitura realizada. Essa ilustração será, eventualmente, objecto de venda ao público, ao preço da uva mijona.

Quem não aparecer é amiguinho do Duarte Lima.
Juancho Perone y Raúl Carnota








Ceal Floyer

A partir desta semana, às Quintas, pelas 22.30h, o Bar A Barraca volta a apresentar sessões semanais de poesia, uma tradição que, em tempos, lhe granjeou enorme fama (para além de ter dado brado nas touradas).
As leituras estarão a cargo do douto poeta Miguel Martins, que, para além da lírica, dá cartas no badmington (pares femininos), na pasteurização de lacticínios (sem glúten) e no bacará.
As sessões prometem ser relativamente breves, pelo que os convivas que assim o entenderem poderão estar em casa antes da meia-noite, embora também possam permanecer no bar até cerca da 1.58h (dependendo das condições atmosféricas) e enfrascar-se como gente grande(ou como o Marques Mendes).
Todas as semanas, o bardo será acompanhado por um outro artista de gabarito internacional (actor, poeta, artista plástico, músico, ministro da presidência, gatuno, etc), que ajudará a abrilhantar o evento.
Esta Quinta serão lidos poetas publicados pela editora TEA FOR ONE. Entre outros: Ana Salomé, Luís Filipe Parrado, Manuel Filipe, Ricardo Álvaro, Rui Miguel Ribeiro, Abel Neves, A. Maria de Jesus, Inês Dias, Jaime Rocha, Luís Pedroso, Manuel de Freitas, Marta Chaves, Rui Caeiro, Vasco Gato e Filipe Homem Fonseca.
Aliás, este último, na sua qualidade de guitarrista sem par (trata Clapton por “bambino” e consta que terá cortado relações com Django, em virtude de uma desavença em torno da qualidade relativa de dois salpicões das Beiras), participará desta primeira sessão, demonstrando, uma vez mais, porque foi merecedor dos mais rasgados encómios por parte de revistas como a New Musical Express e a Gina.
Quem não aparecer demonstrará inequivocamente que, do ponto de vista ético-intelectual, ombreia com o Relvas.
Até Quinta!

 





Edward Wadsworth

POP

Sitting in his seat, a seat broad and broken
In, sprinkled with ashes
Pop switches channels, takes another
Shot of Seagrams, neat, and asks
What to do with me, a green young man
Who fails to consider the
Flim and flam of the world, since
Things have been easy for me;
I stare hard at his face, a stare
That deflects off his brow;
I’m sure he’s unaware of his
Dark, watery eyes, that
Glance in different directions,
And his slow, unwelcome twitches,
Fail to pass.
I listen, nod,
Listen, open, till I cling to his pale,
Beige T-shirt, yelling,
Yelling in his ears, that hang
With heavy lobes, but he’s still telling
His joke, so I ask why
He’s so unhappy, to which he replies...
But I don’t care anymore, cause
He took too damn long, and from
Under my seat, I pull out the
Mirror I’ve been saving; I’m laughing,
Laughing loud, the blood rushing from his face
To mine, as he grows small,
A spot in my brain, something
That may be squeezed out, like a
Watermelon seed between
Two fingers.
Pop takes another shot, neat,
Points out the same amber
Stain on his shorts that I’ve got on mine, and
Makes me smell his smell, coming
From me; he switches channels, recites an old poem
He wrote before his mother died,
Stands, shouts, and asks
For a hug, as I shrink, my
Arms barely reaching around
His thick, oily neck, and his broad back; ’cause
I see my face, framed within
Pop’s black-framed glasses
And know he’s laughing too.

Barack Obama
Teatro Kabuki

 
Cidade triste entre as tristes,
Oh Baltimore!
Mal eu diria que na terra existes
Cidade dos Poetas e dos Tristes,
Com teus sinos clamando «Never-more.»

Os comboios relampagos voando,
Pela cidade de Baltimore,
Levam uns sinos que de quando em quando
Ferem os ares, o coração magoando
E os sinos clamam «Never-more, never-more».
...........................................
 
Baltimore, 1897.
 
António Nobre

Robert Johnson
Muddy Waters & Sonny Boy Williamson - Got My Mojo Working


Paúl do Boquilobo, Setembro de 2012
Se um poeta solicitasse ao Estado o direito de ter um burguês no seu estábulo, causaria enorme espanto, ao passo que soaria muito natural se um burguês encomendasse um poeta assado.

BAUDELAIRE


As folhas rebentam nas árvores
Como algo que quase se diz;
Os novos botões espreguiçam-se,
O verde é uma forma de mágoa.

Será que renascem, e nós
A envelhecer? Não, também morrem.
O truque que as faz parecer novas
Está escrito no grão dos anéis.

Porém os castelos inquietos
Adensam e crescem com o Maio.
Dizem: "passou, morreu o ano –
Recomecem, recomecem..."

Philip Larkin, Janelas Altas

MIGUEL MARTINS - Inédito

Um nevoeiro, um fumo que se adensa entre os olhos e o olhar, sem nada por dentro e com nada por fora, um luto branco, miséria triste, indescritível, vazia de tudo, até de si.

Os pés, pesados, parecem, todavia, não pousar no chão, do mesmo modo que a cabeça viaja por outra cidade, por outras cidades, sem nome nem nexo, num silêncio alheio ao restolhar das ruas.

Os cigarros sucedem-se, inopinados, movidos por uma mão alheia, na esperança cancerígena do anonimato, uma réstia de fé nas fendas que me haveriam de sorver o corpo decomposto, liquefeito, cru por uma vez.

Sou a minha sala sem janelas por onde entrassem ar ou luzes ou deixasse sair um pouco deste vapor de água, que já assobia ao comprimir as paredes, ao enlouquecer o bolor e os insectos.

Algo na garganta empederniu e dói e aflige, como um ovo que não eclode ou uma noz maciça, impossível aos olhos do destino e indiferente aos meus, não fosse esta sede que marulha, brutal, por entre a solidão.

A confusão anoitece-me a todas as horas, perde-me os olhos na vibração das vossas línguas, próximas ou distantes, nos vossos dedos sempre decepados, mesmo quando riscam o ar à minha frente.

Falam-me e penso Um de nós está morto ou estamos ambos, posto que nem na aparência isto se assemelha à realidade, a nenhuma geometria ou sensação que tenha conhecido, pelo que talvez seja a Índia ou um caixão.

Não me comovo nunca, nem se choro; são lágrimas de pó que irrita a pele, espilros de um buraco ignoto e sujo, que andava escondido sob uns untos e dá passagem às correntes de ar.

Ninguém se importa, ninguém diz nada que não tenha dito, ninguém amanha o pensamento à faca, ninguém morre de pé a meio de um passo, e assim deve ser para que se saiba, se, por absurdo, se quiser saber.

Caí de um muro para o precipício mais pequeno, sonhando-me numa cama que não tenho, fui arranhado por um gato e regado por um jardim, cortei ambas as mãos, carreguei uma casa em braços, suponho-me vivo.
Bobby Hackett
First Fig
Edna St. Vincent Millay 1892–1950

My candle burns at both ends;
It will not last the night;
But ah, my foes, and oh, my friends—
It gives a lovely light!

Napoleon

'WHAT is the world, O soldiers?
.......It is I:
I, this incessant snow,
This northern sky;
Soldiers, this solitude
Through which we go
.......Is I.'


Walter de la Mare

Virginia Astley


 

 Sintra, 1 Set 12
 
 
Paisagens
 
Paisagens aprazíveis, paisagens desoladas.
Paisagens da estrada da vida mais que da superfície da Terra.
Paisagens do tempo que lentamente flui, quase imóvel, que flui para trás.
Paisagens dos pedaços de carne, dos nervos lacerados, das saudades.
Paisagens para cobrir as chagas, o aço, o estilhaço, o mal, a época, a mobilização, a corda ao pescoço.
Paisagens para abolir os gritos.
Paisagens como se tapa a cabeça com um lençol.

Henri Michaux
(tradução de Herberto Helder)
in Doze nós numa corda, Assírio & Alvim
 
(roubado aqui)
ACA

Fome. Sêde. Frio. Tonturas. Vómitos. Confusão. Desespero. Agressividade. Abandono. Desejo de morte. Sobrevivência. Doença. Dôr. Sobrevivência. Pestilência. Desaprendizagem. Habituação. Perda de memória. Dôr. Desdentição. Avitaminose. Chagas. Macilência. Sobrevivência. Dôr. Habituação. Invisibilidade. Visibilidade. Uma coisa da outra. Vergonha. Orgulho. Agressividade. Abandono. Psicose. Dôr. Dôr. Desejo de morte. Sobrevivência. (O castigo). Cobardia. Indignidade. Roubo. Trapaça. Prostituição. Nojo. Mutilação. Chagas. Confusão. Ruído. Demasiados ruídos no silêncio. Ratos. Rodas. Rugas. Rugas por dentro do cérebro. Desespero. Impotência. Impotências. Ódio. Só ódio. Tudo ódio. Sempre. Obsessão. Desejo de sangue. Gritos no vazio da noite. Das ruas. Esconsos. Tapumes. Latadas. Alpendres. Madeiras. Cartões. Meio alguidar de plástico. Vinho. Qualquer coisa. Demência. Exibicionismo. Perdição. Desidentificação. Cão. Gato. Rato. Osga. Lesma. Peçonha. Coisa. Descoisa. Sombra. Ruído. Nada. Sobrevivência. Farrapo. Cheiro. Aca. Tremura. Constante. Desleitura. Desmemória. Desnumeração. Desdentição. Putrefacção. Insuficiência. Queda. Por dentro. Saliva. Demasiada. Só saliva. Todo saliva. Desidentificação. Comichão. Desarticulação. Solidificação. Secura. Olhos pretos. Mijo preto. Merda branca. Bílis. Figadeira. Isca. Venéreas. Dérmicas. Virais. Várias. Misturadas. Insondáveis. Irreparáveis. Tristeza. Tristeza. Tudo tristeza. Tudo nada. Tudo nada ninguém. Surdez. Cegueira. Ninguém. Pão do lixo. Pão do chão. Pelo cheiro. Besunto de embalagem de quê lambido ao sol e aos olhares. Quem fui?, se fui. Quem não sou. Noves fora nada. Soube nadar? Li? Tive na boca outros cabelos? Ensinei? Tive doenças como quem tem doenças por não estar sempre doente? Conheci-te? Conheci alguém? Assoava-me a lenços? Comia sobre toalhas? Temia a morte? O vôo? A vida? Ela aí está. Enorme. E imunda.
 
Miguel Martins
(inédito resgatado ao lixo)

'você que me continua...'



Se ando cheio, me dilua.
Se estou no meio, conclua.
Se perco o freio, me obstrua.
Se me arruinei, reconstrua.

Se sou um fruto, me roa.
Se viro um muro, me rua.
Se te machuco, me doa.
Se sou futuro, evolua.

Você que me continua.
Você que me continua.
Você que me continua.

Se eu não crescer, me destrua.
Se eu obcecar, me distraia.
Se me ganhar, distribua.
Se me perder, subtraia.

Se estou no céu, me abençoe.
Se eu sou seu, me possua.
Se dou um duro, me sue.
Se sou tão puro, polua.

Você que me continua.
Você que me continua.
Você que me continua.

Se sou voraz, me sacie.
Se for demais, atenue.
Se fico atrás, assobie.
Se estou em paz, tumultue.

Se eu agonio, me alivie.
Se me entedio, me dê rua.
Se te bloqueio, desvie.
Se dou recheio, usufrua.

Você que me continua...


AUTOBIOGRAFIA

A extensa e profunda tristeza dos oceanos.
A sua solidão irrevogável.
Os barcos, inaudíveis ou desconexos,
sem rumo nem rota,
mercantis,
que lhes arranham as águas.
As praias e os portos em que morrem
ou que só em fúrias terríveis atravessam,
varrendo as ruas em que os marinheiros passeiam
conversando com prostitutas, missionários, prestamistas
e oficiais de outras aleivosias.
Como os invejam, os imensos oceanos!
Belos, misteriosos, devastadores, eternos,
trocavam tudo pela pequenez de um charco
com rãs mortas e um hálito a cem dias.
Qualquer coisa assim, menos a massa enorme
em que assentam sobre si e se evapora,
só para lhes retornar vezes sem conta.
Qualquer coisa, menos a fricção irmanada com o vento
e com os leitos rugosos de pedras em ruínas,
que não os deixam dormir à superfície
nem estar a sós no fundo de si mesmos.
Não ouvem as sereias e menos imaginam
o crepitar dos galhos de árvore selva adentro,
as luzes das cidades chegam-lhes através de uma insuportável miopia
e dos cães só conhecem os cadáveres.
É triste a sua sina, esmagadora,
o destino do que é demasiado e plúmbeo
e límpido e imundo em alternância.
É uma crueldade indescritível
ora envolver corais alaranjados
como placenta ascética de um futuro mais simples,
ora sentir rebentarem as entranhas
de um contra-tropedeiro e, junto, as suas.
Ó Mar de Aral, evoco-te onde foste,
para te dizer que junto a Punta Arenas,
o mar de sonho que me chorou nos olhos,
num postal sem lembranças nem destino,
inveja-te
como as crianças os ilusionistas.

Miguel Martins

Com dedicatória

 alcochete 07/12


Soneto presente
Não me digam mais nada senão morro
aqui neste lugar dentro de mim
a terra de onde venho é onde moro
o lugar de que sou é estar aqui.

Não me digam mais nada senão falo
e eu não posso dizer eu estou de pé.
De pé como um poeta ou um cavalo
de pé como quem deve estar quem é.

Aqui ninguém me diz quando me vendo
a não ser os que eu amo os que eu entendo
os que podem ser tanto como eu.

Aqui ninguém me põe a pata em cima
porque é de baixo que me vem acima
a força do lugar que fôr o meu

José Carlos Ary dos Santos


é como uma locomotiva em marcha, a estação de desconforto e claridade 
frank o'hara

1
Mas, se nestas seis décadas e meia
eu fui capaz de algum voo

— concedo: semelhante ao das galinhas,
isto é, rudimentar, desgracioso,
com muitíssimo dispêndio de energia
para pouca ascensão, breve e apenas
em desespero de causa;
em todo o caso uma forma de voo
pelo qual me sustentei no ar
em horas de menos peso —

devo agora, fechado o ciclo do voo,
como os pássaros pousar.
E isto não é como uma loja
que muda de ramo
ou que em fins de Dezembro
fecha para balanço.
Nem como executar
um mandato de detença.
Nem expiar a desordem
de, sendo pedestre, ter voado.
Nem um remate compulsivo
à sedição.

Pousar, é tudo. Regressar
ao afago das coisas da terra.
A terra cobrar por fim o que lhe devo
e eu cobrar dela o que me move
desde a primeira hora.

Voei, está voado.
Nada de nostalgias.

2
Escolho o galho
mais ajeitado à minha condição
e, como a ave a quem o voo se esgota
temporariamente, apeio-me do voo.
E também como a ave que, acabada
de pousar, bate ainda as asas
por duas ou três vezes,
assim as bato eu.
Mas enquanto a ave as bate
como para sacudir delas
os resíduos do voo,
eu faço-o por exigência de equilíbrio:
o ramo verga, já não tenho
a agilidade doutros tempos,
cairia se não batesse as asas.
Isto é: bato-as da mesma forma que
o funâmbulo tenteia a vara
e o cego a bangala.
Para me acomodar mais facilmente
no exterior do voo.
3
Nem o meu pouso é passageiro
como o da ave. Daqui em diante
assistirei ao decurso dos dias
pousado definitivamente.
Eis-me pois pousado, procurando
ajeitar o corpo à nova condição.
Os olhos erguidos para o espaço
donde me escorracei
para saber se porventura risquei
o cristal do ar com o meu voo.
Um arranhão que fosse, que depois dele
o cristal já não fosse cristal.
Não risquei.
Louvado seja Deus.
Depois de tanto voo desastrado
deixo o ar nítido inteiro
como o encontrei.
(Não admira. Sempre tive o cuidado
de sacudir os pés à entrada do voo.)
4
Não. Não é por nostalgia,
que nesta hora extrema de pousar
me lembram as hábeis imprudências do voo,
as suas impudências, a tomada da luz.
Parece-me isto antes gratidão.
Voar foi sempre o mais útil
dos meus gestos inúteis.
A haste de feno ao canto da boca.
Um donativo à carne.
O orifício por onde
se escoavam as enxurradas.
Intensamente pousado,
é isto que me lembra.
 
 
A. M. Pires Cabral,
Telhados de Vidro n.º 6. Lisboa, Averno, 2006

35


Tengo las manos de ayer, 
me faltan las de mañana.

Eduardo Chillida


Peine de los Vientos
Eduardo Chillida,
San Sebastian 
/alcochete, julho 12/


Diego no conocía la mar. El padre, Santiago Kovadloff, lo llevó a descubrirla.
Viajaron al sur.
Ella, la mar, estaba más allá de los altos médanos, esperando.
Cuando el niño y su padre alcanzaron por fim aquellas cumbres de arena, después de mutcho caminar, la mar estalló ante sus ojos. Y fue tanta la inmensidad de la mar, y tanto su folgor, que el niño quedó mudo de hermosura.
Y cuando por fin consiguió hablar, temblando, tartamudeando, pidió a su padre:

- Ayudame a mirar!

Eduardo Galeano



AMOR BASTANTE

quando eu vi você
tive uma idéia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante

basta um instante
e você tem amor bastante

um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você
caminhando junto


PAULO LEMINSKI
La vie en close, 1991
 


Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente

E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não trai o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o
[olhar extático da aurora.

Vinicius de Moraes, in 'Antologia Poética'

Gertrude Stein (Sacred Emily, 1913)


“When asked what she  meant by ‘a rose is a rose is a rose’, a line she first used in slightly different form in the poem ‘Sacred Emily’, she explained that in the time of Homer, or even of Chaucer, when the language was still new, ‘the poet could use the name of a thing and the thing was really there’. But through overuse and overfamiliarity, names lost their identities, which she was trying to recover. She boasted, ‘I think in that line the rose is red for the first time in English poetry for a hundred years’. (‘Lecture at Chicago’)
(...) In ‘Poetry and Grammar’, she explains that she was trying to re-create things by calling ‘them by their names with passion’ and ‘struggled desperately’ to avoid ‘nouns as nouns’ - as sterile and debased signifiers.”

in THE NORTON ANTHOLOGY OF MODERN AND CONTEMPORARY POETRY, Vol 1, Modern Poetry
ed. Jahan Ramazani, Richard Ellmann, Robert O’Clair – (p. 177, 3th edition)

the winter this used to be



Transforma-se o amador na cousa amada
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si sómente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim co'a alma minha se conforma,

Está no pensamento como ideia;
[E] o vivo e puro amor de que sou feito,
Como matéria simples busca a forma.


Luís de Camões



A vida tarda
enquanto esta demonstração democrática do Demo
se demora entre ademanes e esgares,
como se tudo não passasse de uma farsa
velha e medíocre,
levada à cena, em sessões contínuas,
desde que uma salamandra se fez gente,
gente escondida
com o rabo de fora.
Resta-nos correr no sentido inverso
aos ponteiros do relógio e procurar,
inglórios, o pântano primordial
e, nele, nossos recantos de calor estagnado,
passar a borracha da noite sobre o carvão do vento,
correndo o risco de tudo esborratar,
e ter esperança ou, pelo menos, fé
nas propriedades curativas das folhas brancas.
Imaginem comigo:
o branco mais profundo
sugando-nos para dentro de si
como o olho de um furacão,
olho terrível e encantador
de répteis.
Antes de mergulhar, permitam-me apenas
um cálice de licor de ervas amargas
e o clangor lânguido de um oboé tibetano.
E depois - só depois - o abismo imenso,
antediluviano,
da nossa morte inteira e sem mentiras,
sem conta-gotas a dosearem tudo,
até a beira-mar
e até o medo.

Miguel Martins, aqui

The Longing for Happiness finds Satisfaction in Art,
Gustav Klimt


HAPPINESS

So early it's still almost dark out.
I'm near the window with coffee,
and the usual early morning stuff
that passes for thought.


When I see the boy and his friend
walking up the road
to deliver the newspaper.


They wear caps and sweaters,
and one boy has a bag over his shoulder.
They are so happy
they aren't saying anything, these boys.


I think if they could, they would take
each other's arm.
It's early in the morning,
and they are doing this thing together.


They come on, slowly.
The sky is taking on light,
though the moon still hangs pale over the water.


Such beauty that for a minute
death and ambition, even love,
doesn't enter into this.


Happiness. It comes on
unexpectedly. And goes beyond, really,
any early morning talk about it.

Raymond Carver


Quantos artistas entoam baladas pras suas amadas
Com grandes orquestras
Como os invejo
Como os admiro
Eu, que te vejo e nem quase suspiro
Quantos poetas românticos, prosas

Exaltam suas musas com todas as letras
Eu te murmuro

Eu te suspiro
Eu, que soletro teu nome no escuro
Me escutas, Cecília?
Mas eu te chamava em silêncio
Na tua presença palavras são brutas

Pode ser que, entreabertos
Meus lábios de leve tremessem por ti
Mas nem as sutis melodias
Merecem, Cecília, teu nome espalhar por aí
Como tantos poetas
Tantos cantores
Tantas Cecílias com mil refletores
Eu, que não digo, mas ardo de desejo
Te olho

Te guardo
Te sigo
Te vejo dormir
Me escutas, Cecília?
Mas eu te chamava em silêncio
Na tua presença palavras são brutas
Pode ser que, entreabertos
Meus lábios de leve tremessem por ti
Mas nem as sutis melodias
Merecem, Cecília, teu nome espalhar por aí
Como tantos poetas
Tantos cantores
Tantas Cecílias com mil refletores
Eu, que não digo, mas ardo de desejo
Te olho Te guardo Te sigo Te vejo
Te olho Te guardo Te sigo Te vejo dormir


(Luiz Claudio Ramos/ Chico Buarque)
Agora, levantava-me...
Lá fora, outra cidade,
inusitada e mansa,
um útero de néon.

Agora, era para sempre
e sem monotonia:
um fogo-de-artifício,
a cona-abelha-mestra.

Agora, era de tarde,
toda lavanda e mel,
ambos em demasia,
exacta demasia.

Agora, tinha sido
um amanhã canoro,
memória antecipada,
um cinzel expectante.

E depois era agora:
o medo de não ser,
o medo de não ter
teu coração no bolso.

Miguel Martins
Canção

Que saia a última estrela
da avareza da noite
e a esperança venha arder
venha arder em nosso peito
.
E saiam também os rios
da paciência da terra
É no mar que a aventura
tem as margens que merece
.
E saiam todos os sóis
que apodreceram no céu
dos que não quiseram ver
- mas que saiam de joelhos
.
E das mãos que saiam gestos
de pura transformação
Entre o real e o sonho
seremos nós a vertigem

Alexandre O'Neill



The Regiment of the Senses

Speak not of guilt, speak not of responsibility. When the Regiment of the Senses parades by, with music, and with banners; when the senses shiver and shudder, it is only a fool and and an irreverent person that will keep his distance, who will not embrace the good cause, marching towards the conquest of pleasures and passions.
All of morality’s laws – poorly understood and applied – are nil and cannot stand even for a moment, when the Regiment of the Senses parades by, with music, and with banners.
Do not permit any shadowy virtue to hold you back. Do not believe that any obligation binds you. Your duty is to give in, to always give in to Desires, these most perfect creatures of the perfect gods. Your duty is to enlist as a faithful footman, with simplicity of heart, when the Regiment of the Senses parades by, with music, and with banners.
Do not confine yourself at home, misleading yourself with theories of justice, with the preconceptions of reward, held by an imperfect society. Do not say, Such is my toil’s worth and such is my due to savor. Just as life is an inheritance, and you did nothing to earn it as a recompense, so should Sensual Pleasure be. Do not shut yourself at home; but keep the windows open, open wide, so as to hear the first sound of the passing of the soldiers, when the Regiment of the Senses arrives, with music, and with banners.
Do not be deceived by the blasphemers who tell you that the service is dangerous and laborious. The service of sensual pleasure is a constant joy. It does exhaust you, but it exhausts you with inebriations sublime. And finally, when you collapse in the street, even then your fortune is enviable. When your funeral will pass by, the Forms to which your desires gave shape will shower lilacs and white roses upon your coffin, young Olympian Gods will bear you on their shoulders, and you will be buried in the Cemetery of the Ideal, where the mausoleums of poetry gleam conspicuously white.



C.P. Cavafy
Largo do Rato,
29/Maio/2012



Regressaram, os jacarandás. Explodem de roxo eléctrico. Acendem-se aos primeiros calores. Avassalam o negrume. Têm um pouco de samba no nome. Ou de sumo fresco. Ou de sol que nasce no mar. Também de ti me ficou esta estranheza, na voz, nos ciclos, na maneira de florir. Passaram séculos. Estações morreram sobre nós. Regressaremos, mas não aqui. E tu, raíz de outro verão, estarás na seiva de todas as vezes que for feliz. 

Clara Pinto Caldeira, aqui
 Pôr do Sol,
Haad Rin, Koh Phangan,
Thailand 2012


um poema em que eu e tu
dormimos sobre o luminoso esplendor do universo.

vasco gato

Lose me on the way

EN EL TÁNGER CAFÉ

Como dos
horizontes
enfrentados
nos miramos
extraños.

Pago el café
y salgo tan rápido
que olvido
dejar al camarero
mil lágrimas
de propina.


Pablo Casares
roubado aqui


...da maneira como hoje se julga que dê prazer estar vivo...
Se Numa Noite de Inverno um Viajante,
Italo Calvino

'You need more than luck in Shangai'


A Dama de Xangai (1947), Orson Welles


'That's how i found her and from that moment on, i did not use my head very much
except to think about her'
Michael O'Hara (Orson Welles)
Passando Portas

tão perto assim
passam portas, palavras
como a imaginar a nossa casa cada vez maior

como a dizer
noutra língua mesma nossa
algo transbordado das palavras e das direções

religiosamente
o dia a dia desaguando além
e a poesia torna-se alimentação


convém lembrar:
- nossa casa é uma promessa que alivia as dores do planeta e do coração, e a melodia que há em nós respira o dom de ser um só (em tantos nós)
quase absurdamente
sentidos musicais em comunhão
e a poesia desaguando além do chão

Luiz Gabriel Lopes

Under the sun



Não é fácil

Não é fácil não pensar em você
Não é fácil, é estranho não te contar meus planos
Não te encontrar...

Todo dia de manhã enquanto tomo meu café amargo
É, ainda boto fé de um dia te ter ao meu lado
Na verdade eu preciso aprender

Não é fácil...não é fácil

Onde você anda, onde está você
Toda vez que eu saio me preparo pra talvez te ver
Na verdade eu preciso esquecer
Não é fácil, não é fácil

Todo dia de manhã enquanto tomo meu café amargo
É, ainda boto fé de um dia te ter ao meu lado
O que eu faço, o que posso fazer
Não é fáil, não é fácil

Se você quizesse ia ser tão legal
Acho que eu seria mais feliz de que qualquer mortal

Na verdade não consigo esquecer
Não é fácil, é estranho


Lotus Flower,
the only existing in Haad Yuan
(Thanks S.)


When one is united to the core of another, to speak
of that
is to breathe the name Hu, empty of self and filled
with love. As the saying goes, The pot drips what is in it.
The saffron spice of connecting, laughter.
The onion smell of separation, crying.
Others have many things and people they love.
This is not the way of Friend and friend.

Rumi