ACA

Fome. Sêde. Frio. Tonturas. Vómitos. Confusão. Desespero. Agressividade. Abandono. Desejo de morte. Sobrevivência. Doença. Dôr. Sobrevivência. Pestilência. Desaprendizagem. Habituação. Perda de memória. Dôr. Desdentição. Avitaminose. Chagas. Macilência. Sobrevivência. Dôr. Habituação. Invisibilidade. Visibilidade. Uma coisa da outra. Vergonha. Orgulho. Agressividade. Abandono. Psicose. Dôr. Dôr. Desejo de morte. Sobrevivência. (O castigo). Cobardia. Indignidade. Roubo. Trapaça. Prostituição. Nojo. Mutilação. Chagas. Confusão. Ruído. Demasiados ruídos no silêncio. Ratos. Rodas. Rugas. Rugas por dentro do cérebro. Desespero. Impotência. Impotências. Ódio. Só ódio. Tudo ódio. Sempre. Obsessão. Desejo de sangue. Gritos no vazio da noite. Das ruas. Esconsos. Tapumes. Latadas. Alpendres. Madeiras. Cartões. Meio alguidar de plástico. Vinho. Qualquer coisa. Demência. Exibicionismo. Perdição. Desidentificação. Cão. Gato. Rato. Osga. Lesma. Peçonha. Coisa. Descoisa. Sombra. Ruído. Nada. Sobrevivência. Farrapo. Cheiro. Aca. Tremura. Constante. Desleitura. Desmemória. Desnumeração. Desdentição. Putrefacção. Insuficiência. Queda. Por dentro. Saliva. Demasiada. Só saliva. Todo saliva. Desidentificação. Comichão. Desarticulação. Solidificação. Secura. Olhos pretos. Mijo preto. Merda branca. Bílis. Figadeira. Isca. Venéreas. Dérmicas. Virais. Várias. Misturadas. Insondáveis. Irreparáveis. Tristeza. Tristeza. Tudo tristeza. Tudo nada. Tudo nada ninguém. Surdez. Cegueira. Ninguém. Pão do lixo. Pão do chão. Pelo cheiro. Besunto de embalagem de quê lambido ao sol e aos olhares. Quem fui?, se fui. Quem não sou. Noves fora nada. Soube nadar? Li? Tive na boca outros cabelos? Ensinei? Tive doenças como quem tem doenças por não estar sempre doente? Conheci-te? Conheci alguém? Assoava-me a lenços? Comia sobre toalhas? Temia a morte? O vôo? A vida? Ela aí está. Enorme. E imunda.
 
Miguel Martins
(inédito resgatado ao lixo)

'você que me continua...'



Se ando cheio, me dilua.
Se estou no meio, conclua.
Se perco o freio, me obstrua.
Se me arruinei, reconstrua.

Se sou um fruto, me roa.
Se viro um muro, me rua.
Se te machuco, me doa.
Se sou futuro, evolua.

Você que me continua.
Você que me continua.
Você que me continua.

Se eu não crescer, me destrua.
Se eu obcecar, me distraia.
Se me ganhar, distribua.
Se me perder, subtraia.

Se estou no céu, me abençoe.
Se eu sou seu, me possua.
Se dou um duro, me sue.
Se sou tão puro, polua.

Você que me continua.
Você que me continua.
Você que me continua.

Se sou voraz, me sacie.
Se for demais, atenue.
Se fico atrás, assobie.
Se estou em paz, tumultue.

Se eu agonio, me alivie.
Se me entedio, me dê rua.
Se te bloqueio, desvie.
Se dou recheio, usufrua.

Você que me continua...


AUTOBIOGRAFIA

A extensa e profunda tristeza dos oceanos.
A sua solidão irrevogável.
Os barcos, inaudíveis ou desconexos,
sem rumo nem rota,
mercantis,
que lhes arranham as águas.
As praias e os portos em que morrem
ou que só em fúrias terríveis atravessam,
varrendo as ruas em que os marinheiros passeiam
conversando com prostitutas, missionários, prestamistas
e oficiais de outras aleivosias.
Como os invejam, os imensos oceanos!
Belos, misteriosos, devastadores, eternos,
trocavam tudo pela pequenez de um charco
com rãs mortas e um hálito a cem dias.
Qualquer coisa assim, menos a massa enorme
em que assentam sobre si e se evapora,
só para lhes retornar vezes sem conta.
Qualquer coisa, menos a fricção irmanada com o vento
e com os leitos rugosos de pedras em ruínas,
que não os deixam dormir à superfície
nem estar a sós no fundo de si mesmos.
Não ouvem as sereias e menos imaginam
o crepitar dos galhos de árvore selva adentro,
as luzes das cidades chegam-lhes através de uma insuportável miopia
e dos cães só conhecem os cadáveres.
É triste a sua sina, esmagadora,
o destino do que é demasiado e plúmbeo
e límpido e imundo em alternância.
É uma crueldade indescritível
ora envolver corais alaranjados
como placenta ascética de um futuro mais simples,
ora sentir rebentarem as entranhas
de um contra-tropedeiro e, junto, as suas.
Ó Mar de Aral, evoco-te onde foste,
para te dizer que junto a Punta Arenas,
o mar de sonho que me chorou nos olhos,
num postal sem lembranças nem destino,
inveja-te
como as crianças os ilusionistas.

Miguel Martins

Com dedicatória

 alcochete 07/12


Soneto presente
Não me digam mais nada senão morro
aqui neste lugar dentro de mim
a terra de onde venho é onde moro
o lugar de que sou é estar aqui.

Não me digam mais nada senão falo
e eu não posso dizer eu estou de pé.
De pé como um poeta ou um cavalo
de pé como quem deve estar quem é.

Aqui ninguém me diz quando me vendo
a não ser os que eu amo os que eu entendo
os que podem ser tanto como eu.

Aqui ninguém me põe a pata em cima
porque é de baixo que me vem acima
a força do lugar que fôr o meu

José Carlos Ary dos Santos