"O HOMEM É O QUE RESTA DA CRIANÇA"
Ana Maria Matute




Que pequeno é aquilo contra que lutamos,
como é imenso, o que contra nós luta:
se nos deixássemos, como fazem as coisas,
assaltar assim pela tempestade, -
chegaríamos longe e seríamos anónimos.


Rainer Maria Rilke , in "O homem que contempla",
Livro das Imagens
Converter em realidades os nossos sentimentos e propensões individuais, transformar as nossas disposições de ânimo em medidas do universo, acreditar que, porque desejamos justiça ou amamos a justiça, a Natureza terá necessariamente de ter o mesmo desejo ou o mesmo amor, supor que, porque uma coisa é má, ela pode ser tornada melhor sem a piorar, estas são atitudes românticas e definem todos os espíritos que se revelam incapazes de conceber a realidade como algo situado fora deles próprios, como crianças implorando por luas nesta Terra.Quase todas as modernas reformas sociais são concepções românticas, um esforço para acomodar a realidade aos nossos desejos. O aviltante conceito da perfectibilidade humana.

Fernando Pessoa (Barão de Teive), in "A Educação do Estóico"

Tanto de meu estado me acho incerto


Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio;
O mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando;
Numa hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar uma hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.

Luís de Camões

Contar-te longamente as perigosas
coisas do mar. Contar-te o amor ardente
e as ilhas que só há no verbo amar.
Contar-te longamente longamente.

Amor ardente. Amor ardente. E mar.
Contar-te longamente as misteriosas
maravilhas do verbo navegar.
E mar. Amar: as coisas perigosas.

Contar-te longamente que já foi
num tempo doce coisa amar. E mar.
Contar-te logamente como doi

desembarcar nas ilhas misteriosas.
Contar-te o mar ardente e o verbo amar.
E longamente as coisas perigosas.

Manuel Alegre




Há na pura amizade um prazer a que não podem atingir os que nasceram medíocres. A amizade pode subsistir entre pessoas do mesmo sexo a diferentes, isenta mesmo de toda a materialidade. Uma mulher, entretanto, olha sempre um homem como um homem; e reciprocamente, um homem olha uma mulher como uma mulher; essa ligação não é paixão nem pura amizade: constitui uma classe aparte.O amor nasce bruscamente, sem outra reflexão, por temperamento, ou por fraqueza: um detalhe de beleza nos fixa, nos determina. A amizade, pelo contrário, forma-se pouco a pouco, com o tempo, pela prática, por um longo convívio. Quanta inteligência, bondade, dedicação, serviços e obséquios, nos amigos, para fazer, em anos, muito menos do que faz, às vezes, num minuto, um rosto bonito e uma bela mão!
O tempo, que fortalece as amizades, enfraquece o amor. Enquanto o amor dura, subsiste por si, e às vezes pelo que parece dever extingui-lo: caprichos, rigores, ausência, ciúme; a amizade, pelo contrário, precisa de alento: morre por falta de cuidados, de confiança, de atenção. É mais comum ver um amor extremo que uma amizade perfeita.O amor e a amizade excluem-se um ao outro. Aquele que teve a experiência de um grande amor descuida a amizade; e quem se esgotou na amizade ainda não fez nada para o amor.O amor começa pelo amor, e só se passaria da mais forte amizade para um amor fraco. Nada se parece mais com uma viva amizade do que essas ligações que o interesse do nosso amor nos faz cultivar.

Jean de La Bruyére




Há um modo de fugir que se assemelha a procurar

(victor hugo)


Ama-se pelo cheiro,
pelo mistério,
pela paz que o outro lhe dá,
ou pelo tormento que provoca.
Arnaldo Jabor






Significação existencial do amor II



O amor de S. Francisco, singular penetração do coração como dizia o seu contemporâneo Tomás de Celano, é a mais perfeita forma de amor humano e divino porque, mercê dum dom de caridade infinita, ultrapassa em relação a todas as coisas as nossas distinções do amável e do detestável tal como cada um é capaz de fazer em favor dos seres de excepção que ama. S. Francisco faz para o sofrimento, a dor e a morte, o que nós não fazemos para a própria mãe: aceita-os como irmãos e irmãs, misteriosos instrumentos de Deus no mistério infinitamente amável da sua divindade.
Mas esta aceitação não é aceitação passiva de quem aceitando tudo aceita nada como no budismo para quem as aparências são ilusórias. Esta aceitação é a aceitação heróica da diferença, da eterna irredutível querida por Deus da qual estaremos ausentes.
É a aceitação mesmo do nada do mundo por ser o Nada que Deus quis fosse matéria deste mundo. Ver o Nada e amá-lo, eis S. Francisco pois essa Nada é a imagem sensível, a única que nos é acessível do lado mortal de Deus.


(trancrição de manuscrito a tinta azul numa única folha de papel branco, sem rasuras ou emendas)
Projecto "Inventário e Catalogação do Acervo de Eduardo Lourenço", CNC, Maio 2008

Eduardo Lourenço, in " Inéditos de uma arca labiríntica", LER, Outubro 2009




Significação existencial do amor I

Imagino, muitas vezes que a luta entre Jacob e o Anjo teve um final diferente daquela que narra o texto sagrado. Imagino que Jacob lutou com o Anjo até ao amanhecer e que quando a manhã chegou o Anjo ajoelhou vencido e chorou. E penso então que esta foi a mais desastrosa aventura de um homem: recusar até ao fim da noite submeter-se ao enviado do Senhor. E, finalmente, recusar-se ao Seu Senhor e perder a oportunidade de sair de si mesmo. O Anjo chora não por si mas pelo homem que não consentiu ser vencido e liberto pelo seu deus.
É um combate assim o do encontro humano com a realidade a que chamamos amor. Ganhá-lo, recusando-o ou falhando-o é perdê-lo. Perdê-lo perdendo-nos no abandono a um outro é ganhá-lo. De qualquer maneira a única possibilidade que nos é oferecida para quebrar o arco de invencível solidão que é cada homem que não encontrou o amor e não foi vencido por ele.


(transcrição de manuscrito a tinta preta em duas folhas não numeradas de papel branco amarelecido, não assinado e datável dos anos 50)
Projecto "Inventário e Catalogação do Acervo de Eduardo Lourenço", CNC , Maio 2008

Eduardo Lourenço , in "Inéditos de uma arca labiríntica", LER, Outubro 2009

(para o Miguel)



Palavras de Dia

1.cabeça
2.falta
3.calma
4.craving
5.cereja

Palavras de Noite

1.som
2.coração
3.salvar
4.querer
5.obrigada
Sentenças


Os eleitos voltados de costas para a morte
Vamos de costas em direcção à morte
com uma flauta proibida

A poesia é uma mão debaixo de uma porta
Dispõe ovos a meus pés
e eu incubo-os em cima da minha língua


Rechaço a realidade
como um móvel apodrecido
Instituo a cena obrigada do desejo
Amanheço a acreditar adormeço herege
Meio espírito opta pelo seu orgulho primário
o outro meio pelo seu auto-domínio
Assim pois desgarramento!
E nada de metades
A dinâmica verdadeira encontra-se
no fogo da palha
e em Dioniso

Dos meus pés finos e belos
Dos meus pés de precioso molde
sobe à minha boca a não liberdade
Oh limite de Lúcifer oh virgem não oferecida
Oh viagem oh paisagem sem pátria
Oh voo esférico sobre a gangrena


Carlos Edmundo de Ory


Falta o indulto especial da tua mão e tu a dizeres-me aguda e de assalto:
a solidão é nada.
José Sebag

Palavras de Noite

1.espelho
2.revolução
3.desejo
4.estômago
5.quase
Palavras de Dia

1.fruta
2.obviously
3.éme
4.mão
5.cardiofitness




hoje, vou correr à velocidade da minha solidão.
(al berto)
Palavras de Noite

1.demora
2.genuflexório
3.brownie
4.guache
5.saudade




Preciso Me Encontrar
Cartola


Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir prá não chorar
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir prá não chorar...

Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer
Quero viver...

Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir prá não chorar
Se alguém por mim perguntar
Diga que eu só vou voltar
Depois que me encontrar...

Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer
Quero viver...

Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir prá não chorar...

Deixe-me ir preciso andar
Vou por aí a procurar
Sorrir prá não chorar
Deixe-me ir preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir prá não chorar...


O MUNDO QUE VOS PARECE FEITO DE CADEIAS
ESTÁ TODO TECIDO DE HARMONIAS PROFUNDAS.

*

UMA FLOR CHAMA A OUTRA.

*

As agulhas dos pinheiros longamente absortos
na preguiçosa alegria da estação
ACIMAS DOS AMORES HUMANOS NASCIDOS E MORTOS.


Sandro Penna,
in No Brando Rumor da Vida
Palavras de Dia

1.vento
2.cinza
3.flor
4.vínculo
5.boredom





Hank Moody and "desperate times call for desperate measures"



Não se sabe se uma jukebox é mais triste do que um caixão

Jack Kerouac in Prefácio de "The Americans", Robert Frank
Ed Steidl, 1958



"Cadillac Records" (Beyonce as Etta James)



Der Panther
Rainer Maria Rilke

Im Jardin des Plantes, Paris

Sein Blick ist vom Vorübergehn der Stäbe
so müd geworden,dass er nichts mehr hält.
Ihm ist, als ob es tausend Stäbe gäbe
und hinter tausend Stäben keine Welt.

Der weiche Gang geschmeidig starker Schritte,
der sich im allerkleinsten Kreise dreht,
ist wie ein Tanz von Kraft um eine Mitte,
in der betäubt ein grosser Wille steht.

Nur manchmal schiebt der Vorhang der Pupille
sich lautlos auf -. Dann geht ein Bild hinein,
geht durch der Glieder angespannte Stille -
und hört im Herzen auf zu sein.



La Panthère
Rainer Maria Rilke
(Trad. Angelloz)


Son regard, où les barreaux passent et repassent,
est à ce point lassé qu'il ne retient plus rien.
Il lui semble qu'il y a mille barreaux
et que, derrière mille barreaux, il n'y a aucun monde.

La douce allure des pas souples et forts,
qui tournent dans le cercle le plus étroit,
semble la danse d'une force autour d'un centre
où se tient, étourdie, une grande volonté.

Parfois seulement le rideau de la pupille
sans bruit se lève. Alors une image pénètre,
passe à travers le silence tendu des membres
et, dans le coeur, cesse d'être.


The Panther
Rainer Maria Rilke
(Trad. Stephen Mitchell)


His vision, from the constantly passing bars,
has grown so weary that it cannot hold anything else.
It seems to him there are a thousand bars;
and behind the bars, no world.

As he paces in cramped circles, over and over,
the movement of his powerful soft strides
is like a ritual dance around a center
in which a mighty will stands paralyzed.

Only at times, the curtain of the pupils
lifts, quietly. An image enters in,
rushes down through the tensed, arrested muscles,
plunges into the heart and is gone.
Visto a esta luz és um porto de mar
como reverberos de ondas onde havia mãos
rebocadores na brancura dos braços

Constroem-te uma ponte
que deverá cingir-te os rins para sempre

O que há horrível no teu corpo diurno
é a sua avareza de palavras
és tu inutilmente iluminado e quente
como um resto saído de outras eras
que te fizeram carne e se foram embora
porque verdade sem erro certo verdadeiro
nada era noite bastante para tocarmos melhor
as nossas mãos de nautas navegando o espaço
os corpos um e dois do navio de espelhos
filhos e filhas do imponderável
de cabeça para baixo a ver a terra girar

Quero-te sempre como não querer-te?
mas esta luz de sinopla nas calças!
este interposto objecto
e o seu leve peso de eternidade


Mário Cesariny



Meu bem querer é segredo, é sagrado
está sacramentado em meu coração...

O Segredo dos Seres e do Mundo


Sentia-me à vontade em tudo, isso é verdade, mas ao mesmo tempo nada me satisfazia. Cada alegria fazia-me desejar outra. Ia de festa em festa. Acontecia-me dançar noites a fio, cada vez mais louco com os seres e com a vida. Por vezes, já bastante tarde, nessas noites em que a dança, o álcool leve, o meu desenfreamento, o violento abandono de cada qual, me lançavam para um arroubo ao mesmo tempo lasso e pleno, parecia-me, no extremo da fadiga e no lapso de um segundo, compreender, enfim, o segredo dos seres e do mundo. Mas a fadiga desaparecia no dia seguinte e, com ela, o segredo; e eu atirava-me outra vez.

Albert Camus, in "A Queda"



O Poema em que te Busco é a Minha Rede

O poema em que te busco é a minha rede,
Bem mais de borboletas que de peixes,
E é o copo em que te bebo: morro à sede
Mas ainda és margarida e não-me-deixes
E muito mais, no enumerar das coisas:
Cordão de laço e corda de violino,
Saliva de verdade nalgum beijo,
E poisas
Como ave de aço em pão se não te vejo.
Mas onde mais real do céu me avisas
É nas tuas camisas,
Calças de cor no catre bem dobradas.
E és os meus pensamentos, se te ausentas,
Meu ciúme escuro como vinho em toalha;
E o branco circular das horas lentas
Que um perfurante amor lembrado espalha.
Põe o penso no velo intercrural
Com um atilho vertical:
Rosa coberta esquiva
Quer a mão do desejo, quer
O conhecido cravo da agressão
Que estendo às tuas formas de mulher,
Com esta soma e verbal percaução
(...)

Vitorino Nemésio,
in "Caderno de Caligraphia e outros Poemas a Marga"






Vais avançar. Vais andar como costumas quando estás só e pensas que alguém está olhar para ti, Deus ou eu, ou este cão ao longo do mar, ou esta gaivota trágica face ao vento, tão só frente ao objecto atlântico.


Marguerite Duras





... i think more than I ought to think
do things I never should do
i drink much more that I ought to drink
BECAUSE IT BRINGS ME BACK YOU...


Lembra-te

Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos

Mário Cesariny

O Assombro da Incoerência do Nosso Ser

Sou um mero espectador da vida, que não tenta explicá-la. Não afirmo nem nego. Há muito que fujo de julgar os homens, e, a cada hora que passa, a vida me parece ou muito complicada e misteriosa ou muito simples e profunda. Não aprendo até morrer - desaprendo até morrer. Não sei nada, não sei nada, e saio deste mundo com a convicção de que não é a razão nem a verdade que nos guiam: só a paixão e a quimera nos levam a resoluções definitivas.

O papel dos doidos é de primeira importância neste triste planeta, embora depois os outros tentem corrigi-lo e canalizá-lo... Também entendo que é tão difícil asseverar a exactidão dum facto como julgar um homem com justiça.
Todos os dias mudamos de opinião. Todos os dias somos empurrados para léguas de distância por uma coisa frenética, que nos leva não sei para onde. Sucede sempre que, passados meses sobre o que escrevo - eu próprio duvido e hesito. Sinto que não me pertenço...
É por isso que não condeno nem explico nada, e fujo até de descer dentro de mim próprio, para não reconhecer com espanto que sou absurdo - para não ter de discriminar até que ponto creio ou não creio, e de verificar o que me pertence e o que pertence aos mortos. De resto isto de ter opiniões não é fácil. Sempre que me dei a esse luxo, fui forçado a reconhecer que eram falsas ou erróneas.

Raul Brandão,

in " Se Tivesse de Recomeçar a Vida "







Por isso um pouco de fogo

Bate sanguíneo em meu pulso,

Pois o amor de quem espera

É uma graça a vencer

Uma casa sem hera

É como gente sem viver.

Vitorino Nemésio,

Teu só sossego aqui contigo ausente



As Virtudes da Cidade


Amo o ruído e a constante agitação das grandes cidades. O movimento contínuo obriga à observação dos costumes. O ladrão, por exemplo, ao ver toda a actividade humana, pensa involuntariamente que é um patife, e esta imagem alegre em movimento pode vir a melhorar a sua natureza decadente e arruinada. O boémio sente-se talvez mais modesto e pensativo quando vê todas as forças produtivas, e o devasso diz possivelmente a si mesmo, quando lhe salta aos olhos a docilidade das massas, que não é mais do que um sujeito miserável, estúpido e vaidoso, que só sabe ufanar-se com soberba. As grandes cidades ensinam, educam, e não com doutrinas roubadas aos livros. Não há aqui nada de académico, o que é lisonjeiro, pois o saber acumulado rouba-nos a coragem.
E depois há aqui tanto que incentiva, que sustenta e ajuda. Quase não conseguimos dizê-lo. É tão difícil dar uma expressão viva ao que é refinado e bom. Agradecemos as nossas vidas modestas, sentimo-nos sempre um pouco gratos quando somos empurrados, quando temos pressa. Quem tem tempo para esbanjar não sabe o que o tempo significa, é por natureza um ingrato. Nas grandes cidades qualquer moço de recados conhece o valor do tempo e nenhum ardina quer perder o seu tempo. E tudo o que há nisto de sonho, de pintura e de poesia! As pessoas passam com pressa e empurram-nos. Ora isto tem um signifcado, isto excita, isto põe o espírito em movimento vivo. Quando hesitamos por um momento já nos passaram cem, centenas de coisas pela cabeça e pelos olhos, e percebemos então nitidamente como somos vadios e madraços. Aqui todos têm pressa, porque todos pensam a cada momento que seria bom lutar por alguma coisa e consegui-la. A vida ganha um fôlego magnífico. As feridas e as dores são mais profundas, o júbilo de alegria é mais alegre e duradoiro que noutras partes, pois quem aqui se sente alegre pensa sempre tê-lo merecido árdua e justamente pelo trabalho e pelas fadigas.


Robert Walser, in "Jakob von Gunten"



Onde queres revólver, sou coqueiro
E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alta, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão


Onde queres família, sou maluco
E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon, sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês, eu não vislumbro razão
Onde queres o lobo, eu sou o irmão
E onde queres cowboy, eu sou chinês

Ah! bruta flor do querer
Ah! bruta flor, bruta flor

Onde queres o ato, eu sou o espírito
E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói


Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és

Ah! bruta flor do querer
Ah! bruta flor, bruta flor

Onde queres comício, flipper-vídeo
E onde queres romance, rock’n roll
Onde queres a lua, eu sou o sol
E onde a pura natura, o inseticídio
Onde queres mistério, eu sou a luz
E onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro
E onde queres coqueiro, eu sou obus


O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal

E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há e do que não há em mim

Caetano Veloso




HAVIA LUZ EM UNS INSTANTES SURGIDOS NA MINHA VIDA,

QUE A MESMA VIDA APAGAVA

(edmundo de bettencourt)

Iremos juntos separados,
as palavras mordidas uma a uma,
taciturnas, cintilantes
- ó meu amor, constelação de bruma,
ombro dos meus braços hesitantes.

Eugénio de Andrade


DESCE, DESCE, DESCE ATÉ ONDE SE ENCONTRAM OS OUTROS E TU NO MEIO DELES
Tchekov

280


Afinal deste dia fica o que de ontem ficou e ficará de amanhã: a ânsia insaciável e inúmera de ser sempre o mesmo e outro.

(bernardo soares)



A Função do Amor é Fabricar Desconhecimento

a função do amor é fabricar desconhecimento

(o conhecido não tem desejo;mas todo o amor é desejar)
embora se viva às avessas,o idêntico sufoque o uno
a verdade se confunda com o facto,os peixes se gabem de pescar

e os homens sejam apanhados pelos vermes(o amor pode não se
importar
se o tempo troteia,a luz declina,os limites vergam
nem se maravilhar se um pensamento pesa como uma estrela
—o medo tem morte menor;e viverá menos quando a morte acabar)

que afortunados são os amantes(cujos seres se submetem
ao que esteja para ser descoberto)
cujo ignorante cada respirar se atreve a esconder
mais do que a mais fabulosa sabedoria teme ver

(que riem e choram)que sonham,criam e matam
enquanto o todo se move;e cada parte permanece quieta:


pode não ser sempre assim;e eu digo
que se os teus lábios,que amei,tocarem
os de outro,e os teus ternos fortes dedos aprisionarem
o seu coração,como o meu não há muito tempo;
se no rosto de outro o teu doce cabelo repousar
naquele silêncio que conheço,ou naquelas
grandiosas contorcidas palavras que,dizendo demasiado,
permanecem desamparadamente diante do espírito ausente;

se assim for,eu digo se assim for—
tu do meu coração,manda-me um recado;
para que possa ir até ele,e tomar as suas mãos,
dizendo,Aceita toda a felicidade de mim.
E então voltarei o rosto,e ouvirei um pássaro
cantar terrivelmente longe nas terras perdidas.

E. E. Cummings, in "livrodepoemas"


Let Sporus tremble –"What? that thing of silk,
Sporus, that mere white curd of ass's milk?
Satire or sense, alas! can Sporus feel?
Who breaks a butterfly upon a wheel?"
Yet let me flap this bug with gilded wings,
This painted child of dirt that stinks and stings;
Whose buzz the witty and the fair annoys,
Yet wit ne'er tastes, and beauty ne'r enjoys,

Alexander Pope, "Epistle to Dr Arbuthnot"

January 1735

-

"Who breaks a butterfly upon a wheel?" has entered common use and has become associated with more recent figures.
It can be taken as referring to putting massive effort into achieving something minor or unimportant, and alludes to "breaking on the wheel", a form of torture in which victims had their long bones broken by an iron bar while tied to a Catherine wheel.

The line "Who breaks a butterfly upon a wheel?" forms line 308 of the "Epistle to Dr Arbuthnot" in which Alexander Pope responded to his physician's word of caution about making satirical attacks on powerful people by sending him a selection of such attacks.


(in Wikipedia)




Que Encanto é o Teu?

Amo-te muito, meu amor, e tanto
que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda
depois de ter-te, meu amor. Não finda
com o próprio amor o amor do teu encanto.

Que encanto é o teu? Se continua enquanto
sofro a traição dos que, viscosos, prendem,
por uma paz da guerra a que se vendem,
a pura liberdade do meu canto,

um cântico da terra e do seu povo,
nesta invenção da humanidade inteira
que a cada instante há que inventar de novo
,

tão quase é coisa ou sucessão que passa...
Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,
sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.

Jorge de Sena, in 'As Evidências'




On the floating, shapeless oceans
I did all my best to smile
til your singing eyes and fingers
drew me loving into your eyes.

And you sang "Sail to me, sail to me;
Let me unfold you."

Here I am, here I am waiting to hold you.
Did I dream you dreamed about me?
Were you here when I was full sail?

Now my foolish boat is leaning, broken love lost on your rocks.
For you sang, "Touch me not, touch me not, come back tomorrow."
Oh my heart, oh my heart shies from the sorrow.
I'm as puzzled as a newborn child.
I'm as riddled as the tide.
Should I stand amid the breakers?
Or shall I lie with death my bride?

Hear me sing: "Swim to me, swim to me, let me unfold you."
"Here I am. Here I am, waiting to hold you."
"Tenho tanto que dar uma volta à vida toda. Não te movas. Sob a eternidade do sol e da neve. Uma malícia súbita no teu riso, no teu olhar. Um clarão à volta de deslumbramento. Irradiante fixo. Não te tires daí. Instantâneo da minha desolação. Tenho mais que fazer agora. Não saias daí. A boca enorme de riso, os olhos oblíquos de um pecado futor. Fica-te aí assim, talvez te procure ainda, talvez te escreva uma carta de amor. Daqui donde estou, está uma tarde quente. De amor."

Vergílio Ferreira,

in "Para Sempre"


Há-de flutuar uma cidade

há-de flutuar uma cidade no crepúscolo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade


Al Berto









Ver-te é como ter á minha frente todo o tempo
é tudo serem para mim estradas largas
estradas onde passa o sol poente
é o tempo parar e eu próprio duvidar mas sem pensar
se o tempo existe se existiu alguma vez
e nem mesmo meço a devastação do meu passado

Ruy Belo