Minha irmã tinha um herbário
(um belo herbário arbóreo),
mas o tempo, que é otário,
o supremo salafrário,
embrulhou-a num sudário
perfumado a incensório,
que não a iça ao zimbório,
que a fecha, sim, num armário,
para a baixar ao crematório
onde crepita, ilusório,
esse conto do vigário
do trabalho meritório,
do trabalho necessário
ao nosso esforço gregário
para acedermos a um empório
que só vende o acessório
e, o que ainda é mais notório,
torna o mundo menos vário
e muito mais merencório.





Nannas Lied
(Verf. Bertolt Brecht)

Meine Herren, mit siebzehn Jahren
kam ich auf den Liebesmarkt,
Und ich habe viel erfahren
Böses gab es viel
Doch das war das Spiel.
Aber manches habe ich doch verargt.
(Schliesslich bin ich auch ein Mensch.)
Gottseidank geht alles schnell vorüber
Auch die Liebe und der Kummer sogar.
Wo sind die Tränen von gestern abend?
Wo ist der Schnee vom vergangenen Jahr?

Freilich geht man mit den Jahren
Leichter auf den Liebesmarkt
Und umarmt sie dort in Scharen.
Aber das Gefühl
Wird erstaunlich kühl
Wenn man damit allzuwenig kargt.
(Schliesslich geht ja jeder Vorrat zu Ende.)
Gottseidank geht alles schnell vorüber
Auch die Liebe und der Kummer sogar.
Wo sind die Tränen von gestern abend?
Wo ist der Schnee vom vergangenen Jahr?

Und auch wenn man gut das Handeln
Lernte auf der Liebesmess':
Lust in Kleingeld zu verwandeln
Wird doch niemals leicht.
Nun, es wird erreicht.
Doch man wird auch älter unterdes.
(Schliesslich bleibt man ja nicht immer siebzehn.)
Gottseidank geht alles schnell vorüber.
Auch die Liebe und der Kummer sogar.
Wo sind die Tränen von gestern abend?
Wo ist der Schnee vom vergangenen Jahr?


O QUE NUNCA ME DISSESTE É ESTE FRIO

joan margarit



Aguardo os vossos livros como uma tempestade que irá - quer eu queira quer não - desabar.
Semelhante a uma operação ao coração. (Sem metáfora! Todo o poema (teu) corta o meu coração e retalha-o segundo o seu saber - quer eu queira quer não).
Não se pode querer nada!
Sabes porque te trato por tu e te amo etc., etc., etc.. Porque tu és uma força.
A coisa mais rara.

 
Marina Tsvétaïeva
SHOSTAKOVICH. SINFONIA “LENINGRADO”


Lembras-te? A Joana tinha morrido.
Tu e eu íamos de carro para o norte,
até ao apartamento em frente ao mar,
e ouvíamos esta sinfonia.
Começámos a viagem
numa manhã luminosa. No interior da música,
o dia era de muros cobertos de gelo,
sombras de transeuntes com sacas meio vazias
e trenós com cadáveres sobre o lago.
Como uma pista de aterragem ao sol,
a auto-estrada fugia e, através dos sons,
estendia-se a névoa dos obuses
e as impressões dos tanques na neve.
Era uma manhã de Julho de ouro azul
a lampejar no vidro do mar.
Nos metais e cordas ressoava
a glória, que está sempre no passado,
recusando, sempre recusando, a vida.


De noite ficava apenas o rumor
das ondas debaixo do terraço.
Por outro lado, dentro de nós, como dentro da música,
rugia o temporal de neve e ferro
que se desata quando a história passa a página.


Joan Margarit


A SÓS COM GANIMEDES



O sábio Freud não quis saber de ti
para nada. Todavia, tu serias

– muito mais do que Édipo, tão falado –
quem teria podido dar-lhe a chave

da porta que ele em vão tentou abrir.
A um canto, na sombra, como mito

rejeitado e por psicanalisar
para sempre, enigmático, ficaste.


Talvez um outro – menos distraído –
contigo venha a conversar por fim.


 
José António Almeida
in A Mãe de Todas as Histórias,
Averno, 2008

399


A porta aporta

a porta roda ao invés da lua
a porta roda bússula enterrada ao invés dos olhos
a porta geme é um cão nocturno
a porta geme extinta na trela da noite
a porta areia
a porta caruncho pária de mar
a porta maré que vem e que vai que bate e que fecha
a porta com máscara de morte
a porta sem sorte
a porta joelho na alma das portas
a porta mulher da casa de passe
a porta manchou a manhã com o grito de porta
a porta enforcada no mastro da casa
a porta por asa
a porta roda
a porta sexo a vida toda
a porta tosca da madrugada pregos são estrelas mortas
a porta pregada
a porta leilão
a porta batente a porta aranha por coração
a porta tu
a porta eu
a porta ninguém na terra pequena
a porta roda
a porta geme
a porta facho
a porta leme


Luíza Neto Jorge
Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

António Ramos Rosa





Tenho que não indagar do mistério para não trair o milagre.

Clarice Lispector



Chorar e Rir




E enquanto uma chora, outra ri; é a lei do mundo, meu rico senhor; é a perfeição universal. Tudo chorando seria monótono, tudo rindo, cansativo; mas uma boa distribuição de lágrimas e polcas, soluços e sarabandas, acaba por trazer à alma do mundo a variedade necessária, e faz-se o equilíbrio da vida.


Machado de Assis, in "Quincas Borba"




Guardo silêncio para que possam ouvi-lo desfazer-se.
Ruy Cinatti



As palavras estão muito ditas
e o mundo muito pensado.
Fico ao teu lado.

Não me digas que há futuro
nem passado.
Deixa o presente — claro muro
sem coisas escritas.

Deixa o presente. Não fales,
Não me expliques o presente,
pois é tudo demasiado.

Em águas de eternamente,
o cometa dos meus males
afunda, desarvorado.

Fico ao teu lado.

Cecília Meireles




A Função do Amor é Fabricar Desconhecimento


a função do amor é fabricar desconhecimento


(o conhecido não tem desejo; mas todo o amor é desejar)
embora se viva às avessas,o idêntico sufoque o uno
a verdade se confunda com o facto,os peixes se gabem de pescar


e os homens sejam apanhados pelos vermes(o amor pode não se
importar
se o tempo troteia,a luz declina,os limites vergam
nem se maravilhar se um pensamento pesa como uma estrela
—o medo tem morte menor;e viverá menos quando a morte acabar)


que afortunados são os amantes(cujos seres se submetem
ao que esteja para ser descoberto)
cujo ignorante cada respirar se atreve a esconder
mais do que a mais fabulosa sabedoria teme ver


(que riem e choram)que sonham,criam e matam
enquanto o todo se move;e cada parte permanece quieta:




pode não ser sempre assim;e eu digo
que se os teus lábios,que amei,tocarem
os de outro,e os teus ternos fortes dedos aprisionarem
o seu coração,como o meu não há muito tempo;
se no rosto de outro o teu doce cabelo repousar
naquele silêncio que conheço,ou naquelas
grandiosas contorcidas palavras que,dizendo demasiado,
permanecem desamparadamente diante do espírito ausente;


se assim for,eu digo se assim for—
tu do meu coração,manda-me um recado;
para que possa ir até ele,e tomar as suas mãos,
dizendo,Aceita toda a felicidade de mim.
E então voltarei o rosto,e ouvirei um pássaro
cantar terrivelmente longe nas terras perdidas.


E. E. Cummings, in "livrodepoemas"



Notícias da última hora: depois de satisfeitas as principais reinvindicações foi levantada às dezoito horas tmg a greve dos controladores de voo.

Jorge Sousa Braga