MIGUEL MARTINS - Inédito
Um nevoeiro, um fumo que se adensa entre os olhos e o olhar,
sem nada por dentro e com nada por fora, um luto branco, miséria triste, indescritível,
vazia de tudo, até de si.
Os pés, pesados, parecem, todavia, não pousar no chão, do
mesmo modo que a cabeça viaja por outra cidade, por outras cidades, sem nome
nem nexo, num silêncio alheio ao restolhar das ruas.
Os cigarros sucedem-se, inopinados, movidos por uma mão
alheia, na esperança cancerígena do anonimato, uma réstia de fé nas fendas que
me haveriam de sorver o corpo decomposto, liquefeito, cru por uma vez.
Sou a minha sala sem janelas por onde entrassem ar ou luzes
ou deixasse sair um pouco deste vapor de água, que já assobia ao comprimir as
paredes, ao enlouquecer o bolor e os insectos.
Algo na garganta empederniu e dói e aflige, como um ovo que
não eclode ou uma noz maciça, impossível aos olhos do destino e indiferente aos
meus, não fosse esta sede que marulha, brutal, por entre a solidão.
A confusão anoitece-me a todas as horas, perde-me os olhos na
vibração das vossas línguas, próximas ou distantes, nos vossos dedos sempre
decepados, mesmo quando riscam o ar à minha frente.
Falam-me e penso Um de
nós está morto ou estamos ambos, posto que nem na aparência isto se
assemelha à realidade, a nenhuma geometria ou sensação que tenha conhecido,
pelo que talvez seja a Índia ou um caixão.
Não me comovo nunca, nem se choro; são lágrimas de pó que
irrita a pele, espilros de um buraco ignoto e sujo, que andava escondido sob
uns untos e dá passagem às correntes de ar.
Ninguém se importa, ninguém diz nada que não tenha dito,
ninguém amanha o pensamento à faca, ninguém morre de pé a meio de um passo, e
assim deve ser para que se saiba, se, por absurdo, se quiser saber.
Caí de um muro para o precipício mais pequeno, sonhando-me
numa cama que não tenho, fui arranhado por um gato e regado por um jardim,
cortei ambas as mãos, carreguei uma casa em braços, suponho-me vivo.