sabíamos que na alba seguinte não nos restaria
mais nada, nem a mulher bebendo ao nosso lado o sono
nem a memória de que fomos homens alguma vez

Yorgos Seferis




Queres que te conte sobre este ardor
arroxeado, a luz breve dos jacarandás
enquanto se desprende a manhã
ao ritmo estranho dessas
canções amputadas, melodia ácida
onde pousa a voz, sem uma frase certa
que possa martelar? Carícias assim,
um afecto entre sombras. Esquecida
a carne, esquecido o seu perfume
e os cinco meses anteriores.


No estio das primeiras horas
só o pus das imagens. A rotação pobre
de que sofre o silêncio, madrugadas
em seu rendado escuro, suas sílabas de
fuligem e bolor, conchas, pedacinhos
de ossos e outros fósseis líricos.
As nossas alusões amputadas concentrados,
slogans de um desespero que
já nem será nosso,
mas onde mergulhámos as mãos
cansadas e sujas de virar
fantasias de revista, este mundinho
de vazios berrantes, derrubado
sobre os nossos joelhos.


Soa disperso um eco gélido, o balido
de um sino, animal que vem sangrando
há séculos. Vagueio por aí
e sinto o peso de mil vozes sobre
a minha. Como olham
longamente, como alargam um gesto
solto das lendas, os vultos em fundo.
Assobios levados pelas brisas a esse limiar
onde o real se apeia nos eléctricos
que passam entre sonhos. A cabeça
encostada à janela, adormecida à margem
das encantações. Juntos, puxam
devagarinho os fios de sol, luz
que apalpou os frutos todos, um gosto
a abismo entre aquelas mãos intensas.


Persigo a pequena aranha de prata
que levavas presa na força escura
dos cabelos, a raiz espessa de uma nódoa
de batôn que me engole, o vestidinho curto,
cheio de brilhos – cinza de estrelas, dizias,
mordendo um sorriso. Bebeste-me a água
das flores, e a tua boca ainda
mexe mas não se percebe nada. Já não
serias tu. Restos de ti que levei a esse mito
de água salgada, mulher, cântico sem fim.


Aonde me levam agora
esses atalhos que aprendi contigo?
Ficaram algumas noites minhas
ainda em tua casa, leituras que deixei
a meio, mesmo a posição doce
desse corpo, esculpido quando dormias
e eu não.
Isso tudo, agora um poema atravessado
dos sinais que mais cedo nos esquecem.
Não me digas que não é triste.

 Diogo Vaz Pinto,
in O Melhor Amigo



 

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