Somos apenas ossos dispersos
Que ficaram na tua posse
Tu darás o devido valor aos ossos dispersos.
Se as nossas almas se sacrificaram pela liberdade,
a vitória e a esperança
ou em vão,
não sabemos, já não podemos falar
Agora, és tu quem fala.

Chairil Anwar
1948

Domingo



Escrevo coisas incríveis. Só que não as escrevo.
É como se as escrevesse, andam assim por dentro.

Manuel Hermínio Monteiro




Este é o lado onde explodem as açucenas.
As suas pétalas desfazem-se, secam,
são arrastadas pelas mãos do outono.
Em delicado ninho de fios de seda e ouro,
começo a levar o teu coração.
E o teu coração, aflito coração,
ainda bate no tempo das açucenas,
aflitas açucenas que o grande assassino
desfez, uma a uma,
à entrada da casa.

José Agostinho Baptista

55555 km


não me lembrava do silêncio.

CHÃO


quem anda de cabeça para baixo tem o céu como abismo debaixo dos pés.

                                                                                                                                              paul celan






XXIII



- Corrupção Platónica: fato de celofane (mais goma que fazenda), honestidade que se exibe ostensivamente (Deus por testemunha).
Típico do sujeito pronto a saltar o risco. Mas não salta.
Do outro lado há consequências, trapalhadas, e é preciso enfrentá-las.

Carlos de Oliveira, in Finisterra





Scène des marionnettes
Extrait du film *La double vie de Véronique* de Krzysztof Kieślowski
Musique de Zbigniew Preisner
1991











PROIBIDA A ENTRADA DE ANIMAIS (EXCEPTO CÃES-GUIA)

apresentação de David Teles Pereira e Diogo Vaz Pinto

Língua Morta

The hills are real alive

Biografia

O coração é uma arte difícil. Mas tudo o resto é a crédito.

José Amaro Dionísio

in Revista "Telhados de Vidro", nº14, pp. 95 
Averno
Set 2010

Imagens de Deus e do Diabo

Castelo de Sta. Maria da Feira



Fado Português

O Fado nasceu um dia,
quando o vento mal bulia
e o céu o mar prolongava,
na amurada dum veleiro,
no peito dum marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.

Ai, que lindeza tamanha,
meu chão , meu monte, meu vale,
de folhas, flores, frutas de oiro,
vê se vês terras de Espanha,
areias de Portugal,
olhar ceguinho de choro.

Na boca dum marinheiro
do frágil barco veleiro,
morrendo a canção magoada,
diz o pungir dos desejos
do lábio a queimar de beijos
que beija o ar, e mais nada,
que beija o ar, e mais nada.

Mãe, adeus. Adeus, Maria.
Guarda bem no teu sentido
que aqui te faço uma jura:
que ou te levo à sacristia,
ou foi Deus que foi servido
dar-me no mar sepultura.

Ora eis que embora outro dia,
quando o vento nem bulia
e o céu o mar prolongava,
à proa de outro veleiro
velava outro marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.

José Régio
in 'Poemas de Deus e do Diabo'



A natureza do homem é verdadeiramente ser livre e desejar sê-lo, contudo o seu carácter é tal que ele segue instintivamente as tendências que a sua educação lhe dita.

Étienne de La Boétie,
Discurso da Servidão Voluntária 
(1548)




a única dignidade da vida é narrar-se. ouvir-se nos anfiteatros. o resto é fome, violência e esperma.

vasco gato




Outra educação

Não é o riacho azul que corre à tua frente uma tradução do russo?
Não são os meus olhos maiores que o amor?
Não é isto história, e nós um par de ruínas?
Kenneth Koch

Uma bilha cheia até metade de água,
a colher de café torta e um garfo,
enferrujados entre pés de erva-cidreira
e sulcos de mel – alguma coisa
nesta frágil ordem nos faz achar-lhe
um sentido, pôr na boca uma sombra
por mais passageira que seja.

Assim, enquanto as flores sacodem
o perfume na humidade salgada do ar,
à escada de ferro que sobe espiralando
p’rà mansarda, vem mijar um cão
desorientado, e uns degraus mais acima
dorme de olho aberto um gato zarolho.
Estou entre eles e os pêssegos e cigarros
na mesa de pedra, imagens meio inconscientes,
devorando páginas e páginas do caderno.

A poesia é o menos. Serve
se der com o ritmo e souber guiar
essas nuvens ralas, os rebanhos do céu,
suster o barulhinho intermitente
desta chuva de Agosto nos vidros,
o vento gemendo de gozo e a respiração
funda do mar. Isso e a ronda
noctívaga dos cagarros, o cerco da sua
risada coroando as nossas cabeças.

Queria era falar-te destas casas
com os joelhos dentro de água, a doçura
vagarosa do seu desmoronamento e como
é fácil escutar o sangue aqui. O que sublinha
entre estes nomes que repetimos até
perderem o sabor.
Ponta dos Rosais, Pico da Esperança, Fajã
das Almas, Fajã do Ouvidor, Poça Simão Dias…
Labirínticos e pedregosos, a vertigem
encantada destes lugares é toda uma educação.

Esta gente leda que nos espreita
mansamente à entrada dos cortiços
embelecidos pelo sopro de luz
ganhando cada linha exterior antes
de coalhar no interior. É difícil
ler a distância que pesa no que lhes resta
do olhar ou os gestos com que enxotam
os dias e as moscas.

Gosto muito e sem razão
da rapariga que nos serve num dos poucos
cafés da ilha. A blusa enodoada e doce,
aberta, uma ternura sem jeito e,
por isso, rara. O namorado zela por trás
do balcão. Sussurra-lhe instruções. Os dois
provocam-se, magoam-se – é jogo.
E foi um esboço eterno como este
aquele que deixámos a meio.

De propósito ou não,
no dia em que foste deixaste acesa a luz
do teu lado da cama. Nunca mais
a apaguei. Depois veio o tempo
em que do teu corpo fiz um país infindo
para embebedar-me e perder a pele
todas as noites, mais fundo de cada vez.
Ficar perto desses que raspam o silêncio
com os ossos. Sentir tudo, ver brilhar
as nossas cicatrizes, frescas todas as manhãs.

Defendíamos o nosso inferno.

Quem por esses dias também pouco
tirava do sono era deus. Via-o escapar-se,
madrugada ainda, da mesma pensão barata,
o olhar comido pelo vazio,
triste como nós. E a única consolação
que sempre tivemos era essa: fazíamos
um número do caraças.


Excepção feita a um ou outro pormenor,
esqueci-te. Ficou um ruído sufocado
que mói, mas menos. Às vezes
um cheiro gosta de alguma coisa, puxa
a recordação do teu, outras
acontece-me ler o teu nome por acaso,
e as suas sílabas absurdas, ainda molhadas,
despedaçam-me a boca.

Já não me queixo tanto. Em Lisboa
há um jardim onde me levo,
tem umas estátuas, meio despidas,
uma delas dói-me mais. Gosto de apanhar
a erva que lhe cresce nas margens,
atento àquela boca aberta em redor
de um grito que mais ninguém ouve
senão eu. Mel de uma boca
de sombra onde os dias ganharam
o gosto de esperar uma frase. Eu escrevo.
Quer dizer que abro cortes na ponta
dos dedos, mergulho-os como isco
no escuro, e aguardo.


Diogo Vaz Pinto
S. Jorge, Agosto de 2010

FOI UM AR QUE LHES DEU



"Se um leque não fosse um inseparável companheiro de uma senhora, quasi um confidente, testemunha dos pensamentos de cada instante; se juntar a recordação de um ente importuno a esse confidente não fosse torná-lo menos querido, escreveria neste o meu nome.
Deviam cristalizar em pérolas as lágrimas que nos caem sobre os espinhos que atapetam a estrada da vida. Se assim fosse não caberiam em ornatos no seu leque as que de dor me tem feito derramar, Celeste. "

"Muitas vezes interrompi as minhas leituras e o meu estudo para beijar este leque como quem beija uma relíquia santa. Deixo-o hoje com saudades. Que ele a faça ao menos recordar do muito e muito que a amo."

 
Setembro 1868 Jaime Batalha Reis



 
"Este leque contém a história do meu coração desde que te conheci: primeiro as hesitações e as horas da incerteza: a cristalização de algumas lágrimas choradas por ti. Depois tudo que se passava na alma de ideais, de aspirações à proporção que o coração e o amor me acordava, todas as energias do espírito. E tão belo o momento em que as nossas vistas longo tempo presas a um raio pequeno adquirem como que mais força, e vêem ante si os horizontes aumentarem, as nuvens perderem-se espalhadas por um novo sol!"




(Numa das muitas caixas onde se encontra guardado o Espólio de Jaime Batalha Reis, 112 ao todo!, com milhares de manuscritos seus e de outros autores contemporâneos, repousa um bonito e bem conservado leque de buxo. Nas costas do envelope onde o guardou, Beatriz Cinatti Batalha Reis, a filha que pacientemente preservou e organizou todo o acervo do pai, anotou: Leque de pau de buxo sobre que Jayme Batalha Reis escreveu frases de namoro dirigidas à sua noiva Celeste Cinatti [...]. Nesse tempo o leque era peça indispensável d'uma senhora.
Durante o sofrido namoro com sua futura esposa, Celeste Cinatti, além das centenas de cartas que lhe enviou, deixou-nos, como testemunho da sua relação amorosa, textos pacientemente escritos nas varetas desse leque, datados de 1868 e 1869. O namoro começara em 1867, provavelmente no começo desse ano. O leque, no qual pedira à namorada para escrever algumas palavras, acabou por se manter na sua posse, pelo menos de Agosto de 68 a Março de 69, e servir de confidente aos seus sentimentos amorosos de que nem sempre as cartas eram o veículo mais adequado. Celeste, que já sofrera um desgosto amoroso, mostrava-se desconfiada, obstinada nas suas opiniões, troçando das arremetidas mais românticas que lia nas cartas que Jaime lhe enviava, às vezes três por dia! A tarefa, porém, que se propunha não se apresentava fácil. As varetas, de que só podia aproveitar as partes mais largas, deviam mostrar-se bastante recalcitrantes à tarefa do jovem amoroso.
A lápis, em letra miudinha, as mensagens iam-se acumulando, vareta após vareta, dezanove ao todo, escritas de ambos os lados. Se um leque não fosse um inseparável companheiro de uma senhora, quase um confidente, testemunha dos pensamentos de cada instante; se juntar a recordação de um ente importuno a esse confidente não fosse torná-lo menos querido, escreveria neste o meu nome, reza o primeiro texto. A linguagem nem sempre é escorreita. Jaime Batalha Reis só tinha vinte anos e ainda não era o escritor a quem muitos nos depois Eça iria pedir o prefácio para as Prosas Bárbaras. Aqui, em frases um tanto canhestras, dá largas à sua paixão, maravilha-se com as qualidades físicas e morais da amada, insistindo sempre nos sentimentos que unem as almas de ambos. E a relação vai-se cimentando, desde o tratamento cerimonioso, ate à institucionalização do "tu", em Março de 69, longe ainda do enlace definitivo, mais de três anos depois. No texto escrito naquela data, considera que há um casamento que já se não separa: o das nossas almas. Nas varetas do verso do leque inclui a lenda da princesa Sinfrónia, também ela possuidora de um leque de madeira branca aromática, mas descrente do amor. E nem as palavras escritas pelo seu apaixonado nas varetas desse leque: Amo-te, amo-te, parecem ter alterado os sentimentos da bela princesa. A lenda não é conclusiva quanto à relação da princesa e do seu apaixonado. )

(Mais aqui)

E  ainda aqui :


7 Razões Para

Palermo Shooting (Wim Wenders, 2008)
(Campino, Milla Jovovich, Giovanna Mezzogiorno, Dennis Hopper)






Campino


Wim Wenders e Campino

 



Milla Jovovich



Giovanna Mezzogiorno

Continua na próxima sexta



O CORAÇÃO GALOPA DESORDENADAMENTE

al berto

PALAVRA


Palavra, frase - E as cifras falam
a vida vivida, súbito sentido,
o sol estaca, as esferas calam,
tudo se concentra a ela volvido.

Palavra - um brilho, um voo, um fogo,
um jacto de chamas, de estrelas um traço -
em redor do mundo e de mim há logo
o escuro medonho no espaço vazio.

Gottfried Benn