A FEBRE

Para o Changuito

A imaginação é a melhor memória, a única
que perdura mesmo quando muda de Norte
para Sul, quando a brisa empurra para cima
as lágrimas que a gravidade chamava à terra
ou, ao contrário, quando uma ave, em pleno voo,
cai exausta. E a brisa e a ave são as mulheres,
os pais, vivos ou mortos, as unhas negras
de tanto tropeçar no coração do tempo, a es-
pinha friável que vai sorvendo ácidos sem nome
que não deveriam estar ali ou em parte alguma
pois servem, apenas, a dissolver, a des-
equilibrar a frágil plataforma onde as flores
insistem, hesitantes, em nascer (brancas, azuis,
cor de sangue; algumas, poucas, negras
como o sol durante a noite dos dias incapazes).
A imaginação é a melhor bebida, a água
do  mescal e o mescal da água, urgente, in-
adiável, e todos os que foram ao Neguev
como eu nunca irei sabem do que estou
falando - do trago, bruto e doce, com que calar
o corvo que crocita, rasgando-nos a febre,
a febre tal (tal febre!) que nos parecia mesmo
que era agora que íamos pastar a erva verde
há muito prometida para quando a nossa boca e os
nossos olhos forem a mesma coisa e uma coisa
em tudo tão diversa do que são.

Miguel Martins


Sem comentários:

Enviar um comentário