Presídio

Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?

E o ventre, inconsistente como o lodo?...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo...

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!

David Mourão-Ferreira

1 comentário:

  1. ao amante in(di)visível


    “nem todo o corpo é carne”*,não
    ó subtil incandescência dos olhos
    rasto da luz coada por entre os dedos
    palavra
    -nome que se segrega como suores
    minúscula e húmida de cor
    soprada ao de leve pelos lábios

    não é carne
    os recessos sinuosos da memória
    os lugares de mim onde a língua
    percorrendo-te ávida
    sobra nos lugares de ti. carne não é
    o desfolho do teu tempo
    nos quentes concâvos do meu
    ou os dias que aí repousam
    acantonados entre uma morte
    e outra por vir


    suspeito que mesmo a flor
    tremenda
    do meu ventre
    rebentando agora cálida à tua beira
    não é essa carne viva e pulsante como astro
    mas uma qualquer outra história
    de invisíveis
    e indivisíveis enredos
    mãos bocas fios e abismos com peixes dentro
    onde marés e olhos
    desvendam no mar os rios e
    os ardores do sol
    sabem
    inevitavelmente
    ao luar que aí morre

    : não carne,
    não

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