O real é como o fantástico:
mede o mundo com medidas arbitrárias
Rainer Maria Rilke
de uma retirada: a tarde levanta
as suas âncoras rosadas e parte, deixa
ao frio todos os vestígios. Assim
se fecham em cicatriz. Sombras
misturando-se ao sal e à neblina,
charcos, bichos d’água, um braço
de canteiros com as flores que lhe
restam farejando na treva. Negros,
mínimos sinos, espicaçados
pelo vento – sem cor, quase só ruído
e cheiro – soam longamente
enquanto as ruas se estreitam,
já sem luz,
e a distância nos diz coisas incríveis,
ri-se, enxovalha-nos.
Queres as horas certas, perguntas,
pedes tempo a qualquer corpo triste.
Deixas-te amparar em qualquer café.
Estrelas extremas sobre estas mesas
de aço, pedras assobiando ao passario.
Qualquer fantasia já vai juntando
umas letras, aprende a escrever,
escolhe um veneno.
Ócios nocturnos, a noite mesma
um ritmo de cotovelos, este avolumar
de páginas enfurecidas. Deserções,
desacatos, versos imperdoáveis. A garganta
em carne viva, soletra ofensas novas
e da realidade (velha beata metediça)
só aceita esse seu queixo caído.
Que idade perdida, que cheiro
a desinfectante, e a veemência destes
velhos contadores de lérias-lendas, agarrados a seus
inúteis lemes – em cada bolso um reino
só de traças.
A afundar-se há anos a um canto,
um piano decrépito acarinha alguma
balada profana – tão cheia de escuridão,
como se dela bebêssemos
noites futuras. Tantos invernos piores,
razões suficientes para não voltarmos.
Mas recolhemos a nossa morte
na vida dos outros.
Por isso vens, fazes-te vítima de tudo:
essas coxas, meias de malha, mãos
de louça antiga, sardas e
que boca, que madrugada adolescente.
O olhar, pequeno vadio de cor perdida,
segue apalpando o que tem por diante,
antes que também esfrie e o desejo
escureça inteiro numa garrafa,
só à espera do gusano. Seguirás
depois, sem nada,
em busca de algum espelho doce
e de uma lâmina que te abra
o último sorriso.
Diogo Vaz Pinto
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