( Cachimbo, Garrafa de Bass e Dado, Picasso, 1914)


O meu cachimbo

Ó meu cachimbo! Amo-te imenso!
Tu, meu turíbulo sagrado
Com que, Sr. Abade, incenso
A Abadia do meu passado.

Fumo? E acorre-me à lembrança
Todo esse tempo que lá vai,
Quando fumava, ainda criança,
Às escondidas do meu Pai.

Vejo passar a minha vida,
Como um grande cosmorama:
Homem feito, pálida Ermida,
Infante,pela mão da ama.

Por alta noite, às horas mortas,
Quando não se ouve pio, ou voz,
Fecho os meus livros, fecho as portas
Para falar contigo a sós.

E a noite perde-se em cavaco,
Na Torre d’Anto, aonde eu moro!
Ali, metido no buraco,
Fumo e, a fumar, às vezes… choro.

Chorando (penso e não digo)
Os olhos fito neste chão,
Que tu és leal, és meu amigo…
Os meus amigos onde estão?

Não sei. Trá-los-á o «nevoeiro»
Os três, os íntimos, Aqueles,
Estão na Morte, no estrangeiro…
Dos mais não sei, perdi-me deles.

Morreram uns. Por isso peço
A Deus, se ele está de maré:
E, às noites, quando eu adormeço,
Fantasmas, vêm, pé ante pé…

Tristes, nostálgicos da cova,
Entram. Sorrio-lhes e falo.
Deixam-me estar na minha alcova,
Até se ouvir cantar o galo.

Outros, por esses cinco Oceanos,
Por esse Mundo erram, talvez:
Não me escreveis, há tantos anos!
Que será feito de Vocês?

Hoje, delícias do abandono!
Vivo na Paz, vivo no limbo:
Os meus amigos são o Outono,
O Mar e tu, ó meus Cachimbo!

Ah! quando for do meu enterro,
Quando partir gelado, enfim,
Nalgum caixão de mogno e ferro,
Quero que vás ao pé de mim.

Santa mulher que me tratares,
Quando em teus braços desfaleça,
Caso os meus olhos não cerrares,
Embora! Que isto não te esqueças.

Coloca sobre a travesseira,
O meu cachimbo singular
E enche-o, solicita Enfermeira,
Com Gold-Fly, para eu fumar…

Como passar a noite, Amigo!
No Hotel da Cova sem conforto?
Assim, levando-te comigo,
Esquecer-me-ei de que estou morto…

António Nobre

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