"FALAR SEPARA, TAMBÉM."
Albert
Camus
Quando acordei sem sentir o lado esquerdo,
sorri. A perna arrastada, o braço caído, a dormência na cara: sempre me tinham
dito que estava tudo na cabeça e agora esta anestesia imperfeita do lado do
coração. O corpo a desistir finalmente a tempo, antes de mim.
Depois vieram as pessoas à mesa. As
perguntas. Os olhares inquietos. As conclusões demasiado apressadas para o corpo
em greve. Os toques, as insistências, as pressões. E finalmente as palavras que
saíam devagar mas que não conseguiam parar os olhares inquietos, os
entreolhares, os toques, as insistências, as pressões. As palavras que só
conseguiam parar as perguntas, porque saíam diferentes das perguntas que tinham
na cabeça, diferentes também - percebia ainda mais devagar - das respostas que
eu tinha na cabeça. Uma espécie de afasia que começara do lado do coração, como
se tivessem cimentado a porta para a rua. De repente, sabia com o corpo todo por
que razão silêncio é uma palavra impossível. Só o som da circulação
parada no cimo da montanha-russa, o mal que continuava a sua teia à
transparência da pele. Só. O grau zero da solidão, não passeada entre os outros,
uma canção fria presa dento de mim.
Durou uma manhã. Seguiu-se uma pequena
morte: um enjoo do ar, uma sonolência agravada pela luz, depois o lado esquerdo
como que apunhalado repetidamente pela tarde. As pessoas à volta da cama: as
veladoras. Um sorriso ainda do lado direito, mas apenas por dentro. E o regresso
novamente provocado, novamente puxado ao mundo. Dias e dias com o pensamento
cartografado por máquinas e as reacções medidas na ponta de agulhas. Um grau de
normalidade injectado para se ver melhor o contraste.
E os olhares sempre inquietos. As
conclusões sempre mais rápidas do que o corpo a acordar de uma queda em sonhos.
As palavras como água inquieta a regressar após um corte. Sempre as palavras.
Espessas, duras, de língua áspera. Minhas, mas não entre mim e os outros, não
entre mim e o mundo. Minhas, por serem um sinal de nascença, por serem os
outros, por serem o espaço de mundo entre nós. Minhas, por terem ficado à espera
cá dentro, enquanto reparava, sem o poder dizer, que a morte era afinal a
vizinha com quem me cruzava todas as manhãs nas escadas e trocava os bons dias,
ou o cão triste na esquina da rua, no regresso do trabalho. A morte familiar.
Sem susto. Sem ser a medida de todas as coisas, por estar já entre todas as
coisas.
A medida de todas as coisas, essa é a
amizade. Ter um girassol a crescer na varanda de baixo e a tentar chegar ao meu
andar, antes do final da primavera. Ter um arquipélago de seres para quem se
ordena a nossa quotidiana páscoa, para quem se reserva as palavras pesadas,
cosidas, arrumadas, limpas com que prestamos testemunho enquanto assistimos ao
mundo desde a última fila.
Os meus amigos sabem, exactamente por esta
ordem: explicar que o meu coração tem quatro janelas incompletas, uma árvore a
crescer lá dentro e alguém que ainda se recorda de como rezar; seguir as
coincidências no caminho dos ciprestes; descobrir a doçura que só entrego em
contrabando e de que cor é para mim a liberdade; curar as estrelas e os pássaros
que caem do céu como peças a mais do universo. Estes amigos, os meus, ensinam-me
que, se não sonhar, morro. Lembram-me que há sempre outro rio mais fundo, mais
rente ao início do mundo.
E conseguem sobretudo pôr as mãos sobre o
meu coração, à distância de uma noite inteira e de vários quilómetros de vida.
Por isso é que nunca os deixo partir, mesmo quando têm de partir e o fio que nos
prende se mistura definitivamente ao corpo, que às vezes me falha.
Inês Dias, aqui
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