XIX. Recorda-te de pessoas perto de quem tenhas estado, sem que tivessem, no entanto, partilhado uma hora. Por exemplo, parentes que se reencontram junto ao leito de morte de um ente verdadeiramente querido. Cada um vive esse momento mergulhado nas recordações que tem dele. As suas palavras cruzam-se, sem que saibam umas das outras. As suas mãos perdem-se na primeira confusão. – Até que a dor atrás deles alastra. Sentam-se, afundam a testa e calam-se. Sobre eles, um rumor como o de uma floresta. E estão próximos uns dos outros, como jamais.


Rainer Maria Rilke
Averno, 2011

sáb.24 dez 1927
qua.25 mar 2011


NAS FOLHAS DE CHÁ

Estamos de passagem mas em caso algum

esqueceremos o orvalho. Os nossos poros

ossificaram o sangue, é o que a terra diz:

– o alcatrão não é o meu vestido de luto,

mas a pele irrespirável da minha carne.

Agora quem vai querê-la por noiva?

As grinaldas estão cheias de poeira e a

marcha nupcial desafina as estrelas.

O sol feito de gasolina na nossa pele

de verão apodrece depressa nas rugas.

Ainda ris por entre as frestas negras

e deixas entrever outro destino nas folhas

de chá. Mesmo assim o teu cadáver

é belo entre as flores do campo que resta

e o fumo do comboio que te cinza.

O orvalho é uma palavra dócil. Às primeiras

horas quando os despojos se deixam invisíveis

ainda me extasias como a uma princesa a florar

a erecção inicial antes da radiografia pulmonar.

Não choramos por nós quando te morremos?

Rosa Alice Branco



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MEMÓRIA DE JEAN COCTEAU




O amor está tão perto de ser ódio.


Não dispenso a cratera dos boémios,


onde se encontram místicos e génios


unidos ao distúrbio.






O ódio está tão perto do amor.


Não dispenso a cratera d'homens santos,


onde se encontram bons boémios bentos


bem unidos à dor.






Os extremos não se tocam: fundem-


-se até se tornarem num só traço,


muito cingido, em truculento abraço


d'infinita vertigem.






Dificuldade de ser: não mentir,


não escrever mais poemas, não falar;


apenas, ao de leve, expirar


e morrer a sorrir.






António Barahona, O Som do Sôpro,
Lisboa: Poesia Incompleta, 2011





João Paulo Esteves da Silva + Paulo Curado

e Sábado pelas 23h

25 e 26 Março

Bar A Barraca

 



Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que me sai, sem voz, do coração.

David Mourão-Ferreira

(Obrigada à Inês, pelo vídeo)
(...Par délicatesse


J’ai perdu ma vie.


Rimbaud)