A vida, ao pé de mim, não é uma democracia.
A meu lado, muito menos. Não pretende a justiça,
não rebola no charco das lamas-panaceias,
satisfaz-se com pouco, momentos de silêncio
grávido de gente verdadeira. Para a mentira,
aqui, não há lugar; é como no teatro e nos romances
- fidelidade ao texto, liberdade nos gestos
com que lhe damos asas, noite a noite,
meticulosos guardiães do medo
de que alguém fuja durante o nosso sono.
A vida, ao pé de mim, é um trabalho eterno.
A meu lado, a tristeza derradeira.
Funda, para engolir todas as outras.
E Quem me abriu dois batentes na goela,
fez-me armazém de mágoas, como esgoto
do mundo desalmado do abandono.
Não trago paz; só, talvez, menos guerra
connosco, dia a dia, torturada.
Trago uma espada, é certo, de dois gumes:
um, minha cama; o outro, a minha ausência
- escolhei, para sempre, onde vos deitardes.
Miguel Martins
"MAS HÁ DÚVIDA?"