Marbling



La Alfandega, 1994
Humberto Rivas

Threat

Gottfried Benn

Know this:

I live beast days. I am a water hour.

At night my eyelids droop like forest and sky.

My love knows few words:

I like it in your blood.


(trad. Michael Hofmann)

Festival IndieLisboa


«Existe na parte mais ocidental da Ibéria, um povo muito estranho: não se governa, nem se deixa governar!»

General Galba, um dos primeiros governadores romanos na península, 
Séc.III AC

Começa assim e vale a pena ver:

Barba
Paulo Abreu

Exibições ainda a  1 Maio, 21:30, Cinema São Jorge, Sala 3
Secções: Cinema Emergente, Competição Nacional
Ficção, Portugal 2011, 22', 8 Mm, Silent
Argumento: Paulo Abreu
Fotografia: Paulo Abreu
Música: Vitor Rua
Montagem: Paulo Abreu
Com: André Gil Mata, Frederico Lobo, Jorge Quintela, Pedro Bastos
Produtor: Rodrigo Areias
Produção: Bando à Parte
 
 
 
'Um chico-esperto, um sonhador, um simplório e um preguiçoso vivem em comunidade numa era pré-civilizacional. O realizador mostra com pessimismo e humor que o homem é um ser que permanece igual a si próprio, independentemente das mudanças que origina no mundo. E tem um final...' (Miguel Valverde)

No repeat...



Genérico de 'Ascenseur pour l'échafaud',
Louis Malle, 1958

57 dias

 

[Parede na Trav. dos Fiéis de Deus, Abril 12]

Da existência ficara-lhe o olhar desvairado, para dentro, de quem segue na alma um sonho e anda na vida por acaso, o olhar daqueles em quem a vida interior é enorme e que ficam surpreendidos quando a dor lhes diz que o mundo existe.

Raúl Brandão


Fan Ho
Approaching Shadow, 1964



Três fósforos... um a um acesos na noite
O primeiro para ver o teu rosto inteiro
O segundo para ver os teus olhos
O terceiro para ver a tua boca
E toda a escuridão para recordar tudo isso
Apertando-te nos braços

Jacques Prévert


"The only known surviving recording of Virginia Woolf's voice. It is part of a BBC radio broadcast from April 29th, 1937. The talk was called "Craftsmanship" and was part of a series entitled "Words Fail Me". The text was published as an essay in "The Death of the Moth and Other Essays" (1942).
(transcrição aqui )

RETRATO



Uma demora lenta nas palavras


um calor bom na palma das mãos


uma maneira de gostar das pessoas e das coisas


sem tolher movimentos ou forçar as superfícies


beber aos golinhos o café a ferver


ou o whisky chocalhado com pedrinhas de gelo


viver viver roçando as coisas ao de leve


sem poupar o veludo das mãos e do corpo


sem regatear o amor à flor da pele


olhar em torno de si perdida ou esperar o verão


e saber de um saber obscuro que o calor


todo o calor é de mais dentro que vem



RUI CAEIRO



"You always break the kindest heart ,with a hasty word you can’t recall, so,
if I broke your heart last night, it’s because I love you most of all.

 You always hurt the ones you love."

Blue Valentine (Derek Cienfrance, 2010)





Acordo de noite subitamente

Acordo de noite subitamente.
E o meu relógio ocupa a noite toda.
Não sinto a Natureza lá fora,
O meu quarto é uma coisa escura com paredes vagamente brancas.
Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído.
E esta pequena coisa de engrenagens que está em cima da minha mesa
Abafa toda a existência da terra e do céu...
Quase que me perco a pensar o que isto significa,
Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca,
Porque a única coisa que o meu relógio simboliza ou significa
É a curiosa sensação de encher a noite enorme
Com a sua pequenez...

Fernando Pessoa


"If you wake up at a different time, in a different place, could you wake up as a different person?”





“We’re a generation of men raised by women. I’m wondering if another woman is really the answer we need.”


Fight Club (1999)

 hadley hooper


Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua sombra e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.
Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida – e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém,
teu sinal de fogo e leite repõe a força
maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor.


Herberto Helder


Eis que vou adiante, mas não está ali; volto para trás, e não o percebo;

Procuro-o à esquerda, onde ele opera, mas não o vejo; viro-me para a direita, e não o diviso.

Mas ele sabe o caminho por que eu ando; provando-me ele, sairei como o ouro.

Os meus pés mantiveram-se nas suas pisadas; guardei o seu caminho, e não me desviei dele.

Nunca me apartei do preceito dos seus lábios, e escondi no meu peito as palavras da sua boca.

Job 23:8-12
Tori Amos /Adrien Brody



Paradoxo do Estádio

É impossível atravessar o estádio; porque, antes de se atingir a meta, deve primeiro alcançar-se o ponto intermédio da distância a percorrer; antes de atingir esse ponto, deve atingir-se o ponto que está a meio caminho desse ponto; e assim ad infinitum.

Zenão



PLANO DE EVASÃO


Que mais podemos fazer?
Este amor é um país cansado

que não nos deixa mudar.
O medo cerca as fronteiras

e a capital é Nenhures,
cidade de perdulários

e pequenas ruas tortas
onde vem morrer a noite –

aqui estamos ambos sós,
desunidos, extraviados,

não há táxis na praceta
nem cinzeiros nos cafés

e perdemos os amigos
entre as curvas de um enredo

que deixámos de seguir.
Mas não era nada disto

o que tinha na cabeça
ao começar a escrever:

os versos chamam o escuro,
abrem os portões ao frio

e eu quero estar nas colinas
do outro lado do rio.

Rui Pires Cabral
Ladrador (AA. VV.) Averno, Lisboa, 2012.

Música (Im)Possível




Roads

Ohh, can't anybody see
We've got a war to fight
Never found our way
Regardless of what they say

How can it feel, this wrong
From this moment
How can it feel, this wrong

Storm.. in the morning light
I feel
No more can I say
Frozen to myself

I got nobody on my side
And surely that ain't right
And surely that ain't right

Ohh, can't anybody see
We've got a war to fight
Never found our way
Regardless of what they say

How can it feel, this wrong
From this moment
How can it feel, this wrong

[INSTRUMENTAL]

How can it feel, this wrong
This moment
How can it feel, this wrong

Ohh, can't anybody see
We've got a war to fight
Never found our way
Regardless of what they say

How can it feel, this wrong
From this moment
How can it feel, this wrong



O CERNE DA POESIA


O cerne da poesia
é a imagem de um rapaz
a fazer música e amor
com uma rapariga cujo interesse
pelo amor e pela música coincide
em ambos com um enorme desespero
os seus íntimos como uma guitarra
dedilhada sob o sol quente e seco
da esperança onde homens selvagens e brutais
vão rasgando a vida como uma página
de um livro muito
antigo
e amarelo


Harold Norse
(obrigada ao Vasco pelo poema)                                                                                                                                                            Dilka Bear

Com dedicatória





Jean-Luc Godard
(1962)


REPITO


Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
- Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio. De paixão.

Herberto Helder



Sobre Todas as Coisas

Pelo amor de Deus
Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem
Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém
Abandonado pelo amor de Deus

Ao Nosso Senhor
Pergunte se Ele produziu nas trevas o esplendor
Se tudo foi criado - o macho, a fêmea, o bicho, a flor
Criado pra adorar o Criador

E se o Criador
Inventou a criatura por favor
Se do barro fez alguém com tanto amor
Para amar Nosso Senhor

Não, Nosso Senhor
Não há de ter lançado em movimento terra e céu
Estrelas percorrendo o firmamento em carrossel
Pra circular em torno ao Criador

Ou será que o deus
Que criou nosso desejo é tão cruel
Mostra os vales onde jorra o leite e o mel
E esses vales são de Deus

Pelo amor de Deus
Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem
Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém
Abandonado pelo amor de Deus
Chico Buarque
WORDS

Be careful of words,
even the miraculous ones.
For the miraculous we do our best,
sometimes they swarm like insects
and leave not a sting but a kiss.
They can be as good as fingers.
They can be as trusty as the rock
you stick your bottom on.
But they can be both daisies and bruises.


Yet I am in love with words.
They are doves falling out of the ceiling.
They are six holy oranges sitting in my lap.
They are the trees, the legs of summer,
and the sun, its passionate face.


Yet often they fail me.
I have so much I want to say,
so many stories, images, proverbs, etc.
But the words aren’t good enough,
the wrong ones kiss me.
Sometimes I fly like an eagle
but with the wings of a wren.


But I try to take care
and be gentle to them.
Words and eggs must be handled with care.
Once broken they are impossible
things to repair.



Anne Sexton


There is a dream, dreaming us
Provérbio Aborígene
VERSÃO MUITO BONITA DESTA CANÇÃO, embora não tenha dado por ela no filme.

Henri Cartier-Bresson


Daqui da Clara para aqui, da Sandra, muito obrigada .

PÉ : boca, beijo, direcção - perder o pé.


PARAÍSO: nas minhas costas, as tuas mãos.



SAUDADE: os meus ombros crescem para as tuas mãos,

num caminho de silêncio.


RISO: Ui!




O teu corpo é mais belo na minha cama
do que um céu de alegria sobre o mundo.

António Barahona


"FALAR SEPARA, TAMBÉM."

Albert Camus

Quando acordei sem sentir o lado esquerdo, sorri. A perna arrastada, o braço caído, a dormência na cara: sempre me tinham dito que estava tudo na cabeça e agora esta anestesia imperfeita do lado do coração. O corpo a desistir finalmente a tempo, antes de mim.

Depois vieram as pessoas à mesa. As perguntas. Os olhares inquietos. As conclusões demasiado apressadas para o corpo em greve. Os toques, as insistências, as pressões. E finalmente as palavras que saíam devagar mas que não conseguiam parar os olhares inquietos, os entreolhares, os toques, as insistências, as pressões. As palavras que só conseguiam parar as perguntas, porque saíam diferentes das perguntas que tinham na cabeça, diferentes também - percebia ainda mais devagar - das respostas que eu tinha na cabeça. Uma espécie de afasia que começara do lado do coração, como se tivessem cimentado a porta para a rua. De repente, sabia com o corpo todo por que razão silêncio é uma palavra impossível. Só o som da circulação parada no cimo da montanha-russa, o mal que continuava a sua teia à transparência da pele. Só. O grau zero da solidão, não passeada entre os outros, uma canção fria presa dento de mim.


Durou uma manhã. Seguiu-se uma pequena morte: um enjoo do ar, uma sonolência agravada pela luz, depois o lado esquerdo como que apunhalado repetidamente pela tarde. As pessoas à volta da cama: as veladoras. Um sorriso ainda do lado direito, mas apenas por dentro. E o regresso novamente provocado, novamente puxado ao mundo. Dias e dias com o pensamento cartografado por máquinas e as reacções medidas na ponta de agulhas. Um grau de normalidade injectado para se ver melhor o contraste.

E os olhares sempre inquietos. As conclusões sempre mais rápidas do que o corpo a acordar de uma queda em sonhos. As palavras como água inquieta a regressar após um corte. Sempre as palavras. Espessas, duras, de língua áspera. Minhas, mas não entre mim e os outros, não entre mim e o mundo. Minhas, por serem um sinal de nascença, por serem os outros, por serem o espaço de mundo entre nós. Minhas, por terem ficado à espera cá dentro, enquanto reparava, sem o poder dizer, que a morte era afinal a vizinha com quem me cruzava todas as manhãs nas escadas e trocava os bons dias, ou o cão triste na esquina da rua, no regresso do trabalho. A morte familiar. Sem susto. Sem ser a medida de todas as coisas, por estar já entre todas as coisas.

A medida de todas as coisas, essa é a amizade. Ter um girassol a crescer na varanda de baixo e a tentar chegar ao meu andar, antes do final da primavera. Ter um arquipélago de seres para quem se ordena a nossa quotidiana páscoa, para quem se reserva as palavras pesadas, cosidas, arrumadas, limpas com que prestamos testemunho enquanto assistimos ao mundo desde a última fila.

Os meus amigos sabem, exactamente por esta ordem: explicar que o meu coração tem quatro janelas incompletas, uma árvore a crescer lá dentro e alguém que ainda se recorda de como rezar; seguir as coincidências no caminho dos ciprestes; descobrir a doçura que só entrego em contrabando e de que cor é para mim a liberdade; curar as estrelas e os pássaros que caem do céu como peças a mais do universo. Estes amigos, os meus, ensinam-me que, se não sonhar, morro. Lembram-me que há sempre outro rio mais fundo, mais rente ao início do mundo.

E conseguem sobretudo pôr as mãos sobre o meu coração, à distância de uma noite inteira e de vários quilómetros de vida. Por isso é que nunca os deixo partir, mesmo quando têm de partir e o fio que nos prende se mistura definitivamente ao corpo, que às vezes me falha.
Inês Dias, aqui

OUSADIA: Em pequena não sonhei com um príncipe, sabia da existência do Rei.


CASA: o meu lado direito dá para o teu lado esquerdo.



Os livros

É então isto um livro,
este, como dizer?, murmúrio,
este rosto virado para dentro de
alguma coisa escura que ainda não existe
que, se uma mão subitamente
inocente a toca,
se abre desamparadamente
como uma boca
falando com a nossa voz?
É isto um livro,
esta espécie de coração (o nosso coração)
dizendo “eu” entre nós e nós?

Manuel António Pina
(in Como se desenha uma casa; ed. Assírio & Alvim, 2011)

Com dedicatória



 Fios

Aproveitam a teia recurva dos cabelos para se fixarem, são fios mais estreitos que se ligam em ilhas que o emaranhado dos cabelos prende. Pequenas fibras que o atrito separou das roupas e cobertores e a aragem juntou em novelos que o tempo vagaroso engrossa. Entre eles o pó, mais estreito ainda, corpo tão breve que o demora. São ilhas frágeis, o movimento que as formou dispersa-as. São ilhas eternas, sempre outro movimento as renova em algum tempo e lugar. Prendes entre os dedos o novelo que apanhaste do chão. Mais vasto do que tu, mais vasto do que o tempo que te foi dado, nele te fita o vazio sobre o qual te ergues olhar. Olha-o de frente, nada temas. O teu fim igualará o princípio. Tudo será como antes este rosto que é de ninguém.

Jorge Roque, in Broto Sofro
Averno, 2008



...Summer is gone, but our love will remain
Like old broken bicycles out in the rain...


(...)
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso



Mário CesarinyPena Capital
Assírio & Alvim, 2004



ESPLANADA

Por vezes os danos apanham-nos de surpresa.
Por vezes pensamos que podemos reparar
os danos. Se soubéssemos cantar, era uma ajuda.
Há pessoas a espreitar pela janela, no seu modo
de tornar as casas um pouco mais habitáveis.


Que importantes nos tornámos, de repente.
Discutimos o mundo com base em
pequenas coisas, pequenas queixas
do glorioso mecanismo do corpo humano.
(O corpo, claro, tem as suas exigências.)


Aquiles, por exemplo, tem passado melhor
do calcanhar. Haverá sempre um lugar para ele
à mesa do Olimpo. Bem-vindo à unidade
de cuidados intensivos, onde as cervejas se querem
frescas e a dividir por todos.


Vítor Nogueira,
in "Comércio Tradicional", Averno