Num percurso de ida e volta devem entrar em três buracos dispostos em linha recta, saindo vencedora a criança que chegar primeiro ao buraco inicial. (Edição Revista e Aumentada)
O cerco dos teus olhos
é o meu país voluntário.
Prescindo
de resolver a noite
na ânsia cardeal de te marginar.
Ao fundo, as linhas
inquietas
com que se desmancha a chuva.
Depois, o fôlego urgente de
um elemento mais
descuidado: o teu nome
crescido sem letras, desmantelado
às cegas por poços
e tendões.
Vasco Gato,
in Cerco Voluntário
CATEDRAIS
Para imprimir um ritmo à prosa sucede mergulharmos no próprio íntimo e reencontrarmos o ritmo anónimo e múltiplo do sangue.
A prosa quer-se construída como se constrói uma catedral. Sem nome, sem auxílio. De pé sobre o pavimento, a sós com a nossa consciência simples.
Rainer Maria Rilke, Carta a Rodin
Presídio
Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?
E o ventre, inconsistente como o lodo?...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo...
É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio
vulto da Primavera em pleno Outono...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!
David Mourão-Ferreira
Mais Nada se Move em Cima do Papel
mais nada se move em cima do papel
nenhum olho de tinta iridescente pressagia
o destino deste corpo
os dedos cintilam no húmus da terra
e eu
indiferente à sonolência da língua
ouço o eco do amor há muito soterrado
encosto a cabeça na luz e tudo esqueço
no interior desta ânfora alucinada
desço com a lentidão ruiva das feras
ao nervo onde a boca procura o sul
e os lugares dantes povoados
ah meu amigo
demoraste tanto a voltar dessa viagem
o mar subiu ao degrau das manhãs idosas
inundou o corpo quebrado pela serena desilusão
assim me habituei a morrer sem ti
com uma esferográfica cravada no coração
Al Berto
Felices los normales
a Antonia Eiriz
Felices los normales, esos seres extraños.
Los que no tuvieron una madre loca, un padre borracho,
un hijo delincuente,
Una casa en ninguna parte, una enfermedad desconocida,
Los que no han sido calcinados por un amor devorante,
Los que vivieron los diecisiete rostros de la sonrisa
y un poco más,
Los llenos de zapatos, los arcángeles con sombreros,
Los satifechos, los gordos, los lindos,
Los rintintin y sus secuaces, los que cómo no, por aquí,
Los que ganan, los que son queridos hasta la empuñadura,
Los flautistas acompañados por ratones,
Los vendedores y sus compradores,
Los caballeros ligeiramente sobrehumanos,
Los hombres vestidos de truenos y las mujeres
de relámpagos,
Los delicados, los sensatos, los finos,
Los amables, los dulces, los comestibles y bebestibles.
Felices las aves, el estiércol, las piedras.
Pero que den paso a los que hacen los mundos
y los sueños,
Las ilusiones, las sinfonías, las palabras que nos desbaratan
Y nos construyen, los más locos que sus madres, los más
borrachos
Que sus padres y más delicuentes que sus hijos
Y más devorados por amores calcinantes.
Que les dejen su sitio en el infierno, y basta.
Roberto Fernández Retamar
12.
E no entanto, embora cada um aspire a encontrar de si saída
como de prisão, que o odeia e detém lá fundo,
há um grande milagre no mundo:
sinto: toda a vida é vivida.
Quem a vive então? São as coisas que no seu estar
como melodia por tocar
ao entardecer como uma harpa hão-de ficar?
São os ventos que das águas sopram,
são os ramos que sinais trocam,
são as flores que os perfumes estão a tecer,
são as longas áleas a envelhecer?
São os animais quentes, que andam,
são os pássaros que estranhamente se elevam?
Quem vive então? Vives tu, meu Deus, a vida como libertação?
Rainer Maria Rilke
Cantos de Nostalgia
V
Eu sou para ti como uma aprendizagem
e sorrio um pouco quando te enganas;
sei que longe das solidões
caminhas para a grande felicidade
e que encontrarás as minhas mãos.
Acompanho-te através de todas as prosas
e os meus conselhos ensinam-te a compreender
o profundo valor de toda a perda.
Ou dito de outro modo: na mais humilde rosa,
ver crescer a grande primavera
Rainer Maria Rilke a Lou Andreas-Salomé
Dá-me
Dá-me algo mais que silêncio ou doçura
Algo que tenhas e não saibas
Não quero dádivas raras
Dá-me uma pedra.
Não fiques imóvel fitando-me
como se quisesses dizer
que há muitas coisas mudas
ocultas no que se diz
Dá-me algo lento e fino
como uma faca nas costas
E se nada tens para dar-me
dá-me tudo o que te falta!
in Doze Nós Numa Corda,
(Carlos Edmundo de Ory, pp. 37-53)
Poemas mudados para português,
Herberto Helder
A FEBRE
Para o Changuito
A imaginação é a melhor memória, a única
que perdura mesmo quando muda de Norte
para Sul, quando a brisa empurra para cima
as lágrimas que a gravidade chamava à terra
ou, ao contrário, quando uma ave, em pleno voo,
cai exausta. E a brisa e a ave são as mulheres,
os pais, vivos ou mortos, as unhas negras
de tanto tropeçar no coração do tempo, a es-
pinha friável que vai sorvendo ácidos sem nome
que não deveriam estar ali ou em parte alguma
pois servem, apenas, a dissolver, a des-
equilibrar a frágil plataforma onde as flores
insistem, hesitantes, em nascer (brancas, azuis,
cor de sangue; algumas, poucas, negras
como o sol durante a noite dos dias incapazes).
A imaginação é a melhor bebida, a água
do mescal e o mescal da água, urgente, in-
adiável, e todos os que foram ao Neguev
como eu nunca irei sabem do que estou
falando - do trago, bruto e doce, com que calar
o corvo que crocita, rasgando-nos a febre,
a febre tal (tal febre!) que nos parecia mesmo
que era agora que íamos pastar a erva verde
há muito prometida para quando a nossa boca e os
nossos olhos forem a mesma coisa e uma coisa
em tudo tão diversa do que são.
Miguel Martins
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