Num percurso de ida e volta devem entrar em três buracos dispostos em linha recta, saindo vencedora a criança que chegar primeiro ao buraco inicial. (Edição Revista e Aumentada)
Grace é atingida a cada estalo
Vozes Ele nunca (estalo) nunca (estalo) nunca (estalo) nunca (estalo)nunca (estalo)
nunca (estalo) nunca (estalo) nunca (estalo) nunca (estalo)nunca (estalo)
nunca (estalo) te poderá salvar (estalo).
Graham Grace.
Vozes Nunca (estalo)
Calma.
Grace deitada sem se mexer, aterrorizada com o medo de poder provocar mais pancadas.
Graham Fala comigo.
Grace (Não se mexe nem emite nenhum som.)
Graham Nunca.
Uma pancada vinda do nada faz com que Grace grite.
Vozes Ainda há vida na cadela velha.
Graham DESLIGA A CABEÇA. FOI O QUE EU FIZ.
DESLIGA ANTES DE A DOR CHEGAR.
PENSEI EM TI.
in Purificados, Cena 10
Sarah Kane
O Haver
Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...
Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.
Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.
Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.
Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.
Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.
Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.
Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.
Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante
E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.
Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.
Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...
Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.
Vinicius de Moraes
1962
Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.
Manoel de Barros
No próximo dia 27, pelas 18.30h, no Bar do Teatro
A Barraca (Lg.Santos, Lisboa), será lançado o novo livro de
Marta Chaves
"Pensa que deixou de pensar nela"
editado pela Tea For One. A apresentação estará a cargo do escritor Carlos Mota de Oliveira (na foto). A obra inclui um desenho de Sandra Filipe e o grafismo é de Inês Mateus.
a pensar nisso...
Reverse Side of a Painting, Cornelis Gijsbrechts (1670).
However mean your life is, meet it and live it: do not shun it and call it hard names. Cultivate poverty like a garden herb, like sage. Do not trouble yourself much to get new things, whether clothes or friends. Things do not change, we change. Sell your clothes and keep your thoughts.
Henry David Thoreau
Consome com os dentes o cinzento
E ardem loucos os vermelhos
Que cobrem a erva que me doira
O chão do peito
Afinal então batem-me aqui
Este tambor de sangue
Como um sexo de tempo
Pela vida dentro
E estou para gritar
(parece tão simples, agora eu dava-te a mão, sorria com força, dizia-te as cores da esperança que fui catar com um ancinho, punha-a suave no teu bolso e ardíamos os lábios abertos ao temporal de acreditar)
Então não grito.
Agarro-te na boca
E venho contigo
num abraço
Fazer amor à multidão
Manuel Cintra
Nenhum anjo, por mais desatinado, nos cobiçará. Esta cisterna humana engendrou doses sobrenaturais de tédio. Como se na agitação das matérias não houvesse alimento suficiente para o músculo da paixão. Isentos da plácida imortalidade dos anjos, despojamo-nos da fome dos sentidos. Vamo-nos deitando, lentos glaciares, numa desolação mais extrema que a ignorância da gravidade.
Vasco Gato,
in Rusga, Trama
2010
3
Nasce na tua língua e na minha língua
de estrangeiro. Nasce no riso
cúmplice e no número do quarto
que esqueceste escrito no meu jornal.
Ou nasce da noite antiga
onde os corpos perdem a sua fronteira.
Nasce nos teus olhos e nasce nos meus olhos.
E a tua língua é a estrangeira
na minha boca e roda a minha língua
pela alcatifa até afundar-se nas tuas ancas,
até atravessar os rios com os teus pés.
E resvalam as minhas mãos pelo declive
da tua pele, e nas minhas ancas
afunda-se a tua língua e atravessaste rios
com os meus sonhos. Os teus pés nos meus lábios
e o meu pescoço sobre as tuas costas
e as tuas pernas por cima do meu peito.
E sinto o meu corpo estrangeiro
e o teu meu, enquanto nasce
o que cresce sem ter anos nem dias.
Então aprendi que depressa
de nada ia servir a inteligência.
José Ángel Cilleruelo
Antologia , Averno
Cicatrizes florescidas
A água quente lembra-me todas as manhãs
que não tenho mais nada vivo ao pé de mim.
Yorgos Seferis
Emagreceu em poucos dias,
só de ficar quieto, o olhar mera
passagem de sombras,
demoradíssimo – todo o alcance dessa
ausência louca, e aquela expressão
de nunca mais.
Um fio de cabelo atado no pulso,
e as mãos que traz como uma ferida
à altura da boca. Poisa-a nessa artéria
escura, os lábios abrindo um nada
como se noutros esquecessem
uma flor ensanguentada: incêndio
tão delicado consumindo o ar que
nos falta agora a todos.
Bafeja e deixa senhas nas janelas da casa,
tensas sílabas, pequenas lesões sobrepondo-se
à distância. A luz deitada lá fora
como uma nota arrastada e sem fim,
dilatando a tarde, essa impressão que
lhe seca a garganta. Esta terra
estranha iluminada por um sol negro,
não aquece nem seca a chuva
que nos ensopa até aos ossos. Fica
a vibração dos contornos, moradas
precárias. As cicatrizes florescidas
no paredão e essa talha onde as vespas
bebem a água enquanto esta
lhes bebe o reflexo. Algumas afogam-se.
Em cima, os pássaros nos fios como notas
numa partitura. Áspera melodia
de uma hora que não tem como partilhar.
Dois dedos lambidos decifram a
inclinação do vento, os ouvidos sugando
o ruído, gorjeios secos, sem timbre, baixa
a voz, devolve-lhes um eco submisso
e recorda dois versos de Larkin, perfeitos:
Let me become an instrument sharply stringed
For all things to strike music as they please.
Toma a respiração desta paisagem
anoitecida e escreve os últimos capítulos
da sua lenda exausta. Desenha-os,
enredados caminhos onde observa
o escuro rondando o escuro, e a lua ali
perdida e podre como um destroço náutico.
Deitado esperará a manhã e o som
dela escovando os cabelos.
Diogo Vaz Pinto
O cerco dos teus olhos
é o meu país voluntário.
Prescindo
de resolver a noite
na ânsia cardeal de te marginar.
Ao fundo, as linhas
inquietas
com que se desmancha a chuva.
Depois, o fôlego urgente de
um elemento mais
descuidado: o teu nome
crescido sem letras, desmantelado
às cegas por poços
e tendões.
Vasco Gato,
in Cerco Voluntário
CATEDRAIS
Para imprimir um ritmo à prosa sucede mergulharmos no próprio íntimo e reencontrarmos o ritmo anónimo e múltiplo do sangue.
A prosa quer-se construída como se constrói uma catedral. Sem nome, sem auxílio. De pé sobre o pavimento, a sós com a nossa consciência simples.
Rainer Maria Rilke, Carta a Rodin
Presídio
Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?
E o ventre, inconsistente como o lodo?...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo...
É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio
vulto da Primavera em pleno Outono...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!
David Mourão-Ferreira
Mais Nada se Move em Cima do Papel
mais nada se move em cima do papel
nenhum olho de tinta iridescente pressagia
o destino deste corpo
os dedos cintilam no húmus da terra
e eu
indiferente à sonolência da língua
ouço o eco do amor há muito soterrado
encosto a cabeça na luz e tudo esqueço
no interior desta ânfora alucinada
desço com a lentidão ruiva das feras
ao nervo onde a boca procura o sul
e os lugares dantes povoados
ah meu amigo
demoraste tanto a voltar dessa viagem
o mar subiu ao degrau das manhãs idosas
inundou o corpo quebrado pela serena desilusão
assim me habituei a morrer sem ti
com uma esferográfica cravada no coração
Al Berto
Felices los normales
a Antonia Eiriz
Felices los normales, esos seres extraños.
Los que no tuvieron una madre loca, un padre borracho,
un hijo delincuente,
Una casa en ninguna parte, una enfermedad desconocida,
Los que no han sido calcinados por un amor devorante,
Los que vivieron los diecisiete rostros de la sonrisa
y un poco más,
Los llenos de zapatos, los arcángeles con sombreros,
Los satifechos, los gordos, los lindos,
Los rintintin y sus secuaces, los que cómo no, por aquí,
Los que ganan, los que son queridos hasta la empuñadura,
Los flautistas acompañados por ratones,
Los vendedores y sus compradores,
Los caballeros ligeiramente sobrehumanos,
Los hombres vestidos de truenos y las mujeres
de relámpagos,
Los delicados, los sensatos, los finos,
Los amables, los dulces, los comestibles y bebestibles.
Felices las aves, el estiércol, las piedras.
Pero que den paso a los que hacen los mundos
y los sueños,
Las ilusiones, las sinfonías, las palabras que nos desbaratan
Y nos construyen, los más locos que sus madres, los más
borrachos
Que sus padres y más delicuentes que sus hijos
Y más devorados por amores calcinantes.
Que les dejen su sitio en el infierno, y basta.
Roberto Fernández Retamar
12.
E no entanto, embora cada um aspire a encontrar de si saída
como de prisão, que o odeia e detém lá fundo,
há um grande milagre no mundo:
sinto: toda a vida é vivida.
Quem a vive então? São as coisas que no seu estar
como melodia por tocar
ao entardecer como uma harpa hão-de ficar?
São os ventos que das águas sopram,
são os ramos que sinais trocam,
são as flores que os perfumes estão a tecer,
são as longas áleas a envelhecer?
São os animais quentes, que andam,
são os pássaros que estranhamente se elevam?
Quem vive então? Vives tu, meu Deus, a vida como libertação?
Rainer Maria Rilke
Cantos de Nostalgia
V
Eu sou para ti como uma aprendizagem
e sorrio um pouco quando te enganas;
sei que longe das solidões
caminhas para a grande felicidade
e que encontrarás as minhas mãos.
Acompanho-te através de todas as prosas
e os meus conselhos ensinam-te a compreender
o profundo valor de toda a perda.
Ou dito de outro modo: na mais humilde rosa,
ver crescer a grande primavera
Rainer Maria Rilke a Lou Andreas-Salomé
Dá-me
Dá-me algo mais que silêncio ou doçura
Algo que tenhas e não saibas
Não quero dádivas raras
Dá-me uma pedra.
Não fiques imóvel fitando-me
como se quisesses dizer
que há muitas coisas mudas
ocultas no que se diz
Dá-me algo lento e fino
como uma faca nas costas
E se nada tens para dar-me
dá-me tudo o que te falta!
in Doze Nós Numa Corda,
(Carlos Edmundo de Ory, pp. 37-53)
Poemas mudados para português,
Herberto Helder
A FEBRE
Para o Changuito
A imaginação é a melhor memória, a única
que perdura mesmo quando muda de Norte
para Sul, quando a brisa empurra para cima
as lágrimas que a gravidade chamava à terra
ou, ao contrário, quando uma ave, em pleno voo,
cai exausta. E a brisa e a ave são as mulheres,
os pais, vivos ou mortos, as unhas negras
de tanto tropeçar no coração do tempo, a es-
pinha friável que vai sorvendo ácidos sem nome
que não deveriam estar ali ou em parte alguma
pois servem, apenas, a dissolver, a des-
equilibrar a frágil plataforma onde as flores
insistem, hesitantes, em nascer (brancas, azuis,
cor de sangue; algumas, poucas, negras
como o sol durante a noite dos dias incapazes).
A imaginação é a melhor bebida, a água
do mescal e o mescal da água, urgente, in-
adiável, e todos os que foram ao Neguev
como eu nunca irei sabem do que estou
falando - do trago, bruto e doce, com que calar
o corvo que crocita, rasgando-nos a febre,
a febre tal (tal febre!) que nos parecia mesmo
que era agora que íamos pastar a erva verde
há muito prometida para quando a nossa boca e os
nossos olhos forem a mesma coisa e uma coisa
em tudo tão diversa do que são.
Miguel Martins
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